O Homem sofria; podia-se dizer que agonizava...
Naquele lar, ainda que todos estivessem lá nos seus últimos dias – às vezes anos – alguns sofriam mais do que outros... este era dos últimos que são primeiros.
Estava abandonado – mais um caso da segurança social... nenhuma visita, nenhum sorriso que trouxesse algum calor à sua rua deserta e fria, o lugar por onde caminhava desde há meses nas esferas mais exteriores da existência.
Fora maltratado pela família – um olho sempre rasgado, o mesmo que agora sangrava lágrimas de sangue em cada grito de dor física e não só...
Com uma sonda nasogástrica no nariz – aquele tubo que trazia, à rebelia, pedaços de alimentos deglutidos na máquina e directamente para o seu estômago cansado; mãos cobertas com meias para não arrancar o tubo que o obrigava à vida; para não desfazer as fraldas e pintar o quadro negro da sua existência; para retirar os pensos que mantinham as suas carnes flácidas ainda “com alguma dignidade” nesta vida...
Joaquim, com os seus 57 anos, partilhava o quarto com Manuel; juntos perfaziam mais ou menos as mesmas primaveras.
Um berrava sempre que se entrava no quarto e se destapavam os lençóis... talvez recordando a soma das dores já tidas ou berrando desde dentro do túnel negro onde naufragava a consciência da sua existência.
O outro, dizem-me, que chorava com ele no início... agora apenas nos perscruta, olhos arregalados, enquanto se faz o que se tem de fazer...
“
É alguma coisa da cabeça”, dizem umas - as auxiliares, enquanto a cara permanece coberta por um lenço e as compressas amparam o sangue que escorre do olho... “
Óh Cristo, não derramaste tu também lágrimas de sangue por nós?”…
Supõe-se que está terminal: “
O Joaquim hoje tem cor de morto”, diz uma ao seu lado... mas, logo que me achego – mesmo com palavras de conforto – e destapo os cobertores, começa a berrar... não há terminais que berrem assim.
Este homem ainda tem vida a vingar dentro de si…
As úlceras são a coisa de costume – peles e tecidos que já se negam a fazer a sua função... mortos desde dentro abrem em chaga e morrem – ou “
necrosam”, como dizemos nós – e deve-se cortar, promover a “
autólise”... eu seu lá bem mais o quê, enquanto o homem berra a sua dor muda...
A Jacinta chegou lá no final do penso.
Está de férias no lar, mas eu tinha dito que hoje - e durante mais um par de dias - ia passar por lá para “fazer uns pensos” e “dar umas injecções”, enquanto a minha colega está fora.
A Jacinta nunca ocultou a sua simpatia para comigo; hoje, por acaso, estava lá...
O tal Manuel - que perdera o juízo mas ainda se lembrava dos nomes das filhas - saudou-me com um “
Hoje parece um artista!”... vá-se lá saber o saber que um ser destes conserva no seu interior... só a vida do Manuel já dava um filme... por isso é melhor vê-lo a “duas dimensões” para não mergulhar na sua vida e ficar preso nas teias da emoção…
A ela – a Jacinta - o Manuel saudou-a com simpatia, falou três ou quatro frases complexas, numa conversa normal... os loucos, no fim, só falam para quem os ama... ou para quem sabe amar; digo eu.
O Joaquim abriu o olho são para ela mal ouviu a sua voz... “
Ele disse-me «olá» no outro dia” vai ela discorrendo (mas o homem não estava “terminal”, com uma patologia oncológica degenerativa e terminal a nível cerebral?!?). “
Foi quando o sentei e lhe cortei o cabelo, ai não!”...
E fiquei assim, sem poder articular mais palavras do que “
pois é”; no fundo, quem ama, sabe e os seres humanos respondem mais ao amor do que a técnicas... as últimas são prás máquinas – nós inventamo-las!
O primeiro é para nós – e foi esse quem nos inventou...
(
Os nomes dos pacientes e da auxiliar foram alterados, a instituição não é referida pelo nome, de resto a história é real)