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segunda-feira, junho 01, 2009

Passagem

Era início de tarde, um início de tarde como qualquer outro. Logo depois do almoço estávamos a fazer visita de Enfermagem no domicílio. Uma utente que se tinha mostrado alerta e activa tinha definhado, até ser alguém semi-consciente num mundo que gira depressa demais para se acompanhar.

A história de vida desta senhora girava em volta do filho. Desde sempre levantara obstáculos à relação com a nora. Protectora, fizera esforço para que a relação não funcionasse e ele estivesse mais perto; no fundo o amor de mãe é complexo...

Agora, acamada e só, havia caído nas mãos do destino e a sorte ditara que fosse cuidada pela mesma mulher que outrora rejeitara... e parece que aquilo que se ama, tal como aquilo que se odeia, é atraído para a nossa existência com igual intensidade... talvez por isso seja mesmo melhor o amar.

Quando chegamos nesse dia, a família estava presente. Ele e ela estavam ali, sem saber o que fazer. Enquanto falávamos e nos explicavam que ela estava fraca, o inesperado aconteceu e a idosa começou a esvair-se no seu leito.

A minha colega, que havia aprendido sobre a dureza da vida da forma mais dura, desenvolvera uma sensibilidade e à vontade que surpreendiam. Uns anos mais tarde, também ela partiria, derrubada pelo cancro.

Nesses momentos ela foi senhora das circunstancias. Convocou o filho para junto do leito. Enquanto havia dificuldade em se conter as lágrimas, ela lá foi dizendo ao filho para agarrar a mão da sua mãe, falando-lhe suavemente.

Nesse momento, um quadro de traços bizarros ficou gravado na minha mente – era a primeira vez que eu via alguém partir.

A nora chorava, já para lá do ressentimento. O drama humano revelava o seu sentido baixo a máscara das lágrimas não contidas.

O filho agarrava docemente a mão da mãe, como se os papéis vitais tivessem sido invertidos e agora fosse um quem protegia e acolhia e a outra quem era cuidada com carinho e ternura.

O corpo da mãe entrou em convulsão, enquanto a vitalidade se esvaia no sono da inconsciência. Ela partia nos braços de quem tanto amara e, no último instante, era revelado o sentido de uma vida de desencontros.

Eu assistia, ainda recém formado, na estranheza de um cenário para o qual ninguém me tivera preparado anteriormente. Há coisas na vida que apenas se aprendem com a vida – e a morte é uma delas.

A partida, o momento de se despojar da existência e ir, o deixar-se levar pelo desconhecido, era um momento de viragem para o qual ninguém parecia preparado. Apenas a minha colega, no centro dos quatro caminhos que se cruzaram por momentos num só, agia como maestro de uma orquestra de sons esbatidos, ela sim ouvinte de uma voz secreta, no interior do ser(se)humano que lhe segredava de forma inaudível como levar esta situação a bom fim.

Assim ficamos, até que o corpo deixou de se desdobrar baixo o peso da consciência que o abandonava. Assim, em silêncio, até que o tempo voltou ao seu vagar costumeiro e o resto do processo foi consumado.

Sempre lembrarei esse momento no que se assiste a família ao passar de um ser querido. Ai sim, verdadeiros Enfermeiros, cuidadores da pessoa e família como um todo.

1 comentário:

Cisne disse...

Um post espantoso. Fiquei sem palavras.


Cisne.