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terça-feira, junho 02, 2009

... de Regresso


É curioso como se processa a vida, as maneiras como se manifesta, interrompendo os nossos cálculos bem elaborados, os planos traçados acerca da sua forma, extensão e términus.

No ambulatório era um dia como outro qualquer. Saúde de adultos, sorrir para as caras costumeiras, orientar umas consultas de cardiovascular ou diabéticos, realizar alguma que outra marcação de consulta em planeamento familiar...

O Homem entrara célere, rosto algo assustado, mão meio encharcada em sangue. Pensei que se tinha enganado e em vez de recorrer ao serviço de urgência, tinha entrado pelo corredor, perdido no meio das pessoas que aguardavam vez.

O pedido de ajuda esclarecia tudo. A sua mulher estava lá fora no carro e, com sete meses de gravidez, esperava a saída do rebento para um mundo em bulição.

Resulta complicado o adivinhar a razão de ser para um ser humano abandonar a paz e tranquilidade do espaço uterino e enveredar pelos caminhos deste lado do espelho. A saída forçada traz a consciência para um Universo que a não acolhe com boas maneiras; o caminhante precoce, em seus primeiros passos entres dias e noites, terá de sofrer antes de ser afagado pelo abraço terno dos braços maternos.

A esposa, jovem como ele, encontrava-se no carro. Respirando com alguma rapidez, pés apoiados no “tablier”, pernas afastadas em posição habitual para quem passa numa qualquer maternidade.
A menina, que depois se chamaria Teresa, decidira furar os cálculos dos pais em férias, arribando mais cedo às praias populadas de gente neste mundo bizarro.

Todas as semanas passam recém nascidos pelo nosso serviço. É sempre bom pegar neles ao colo e sentir a paz e serenidade que irradiam. Depois vem a inocência de se contemplar um mundo novo e mágico, em constante mudança e a alegria contagiante que as crianças, nos seus primeiros anos de vida, vão lembrando aos que por cá andamos à algumas Primaveras. Por isso penso, que a consciência vem de algum lugar mágico e sereno, onde a alegria é ubíqua e a paz impera. Quando voltamos a esse lugar mágico, vamos ficando novamente crianças, depois bebés de colo. A consciência mergulha novamente no sono subtil de onde viera e a serpente morde a sua cauda num novo devir.

O pai conduzira com uma mão, a outra apoiada na cabeça da filha enquanto esta procurava entrar, ao som das ondas uterinas, num mundo cheio de luz.

Apenas houve tempo. O Centro de Saúde em peso viera cá fora contemplar o milagre, como pastores num qualquer presépio de Natal. Alguns de nós trouxeram lençóis e, como se de uma peça de teatro se tratasse, cobrimos com um biombo a sala de partos improvisada. Duas médicas e mais uma enfermeira ficaram dentro do carro, ajudando o parto. O pai, do outro lado da cortina, andava de um lado para o outro enquanto o povo expectava a chegada da nova vida... O berro não se fez tardar, a Teresa veio à Luz de forma plácida, sua mãe oferecendo com calma o fruto do seu ventre.

O parto não é um momento lá muito belo. Nele se confundem sangue, secreções, força e dor. Uns e outros empurrando a nova vida para fora do sepulcro vivente. O grito de triunfo da vida sobre o silêncio apenas é eclipsado pelo silêncio do primeiro olhar entre mãe e recém nascido.

Silêncio cúmplice numa relação íntima como não há outra, vida com uma vida no seu interior. Magia e embelezamento do primeiro olhar da Teresa para a mãe envolvendo tudo e todos neste momento auge.

A Teresa foi depois até Viana, onde os exames demonstravam que tudo correra pelo melhor. Um mês depois, fora o pai que a trouxera novamente em braços, para nos mostrar o linda que a cachopa era e o quanto estavam os pais agradecidos à equipa do Centro.

Fora um parto bizarro, dentro de um carro e à porta do centro de saúde. Fora um momento belo, no que a vida nos dera mais uma lição acerca do quanto ainda desconhecemos sobre a sua forma de ser e do quanto temos que aprender enquanto caminhamos nos dias e noites deste mundo.

Entretanto, a Teresa já deve ter nove anos, já deve falar e gracejar com a história do seu nascimento. E é que a sucessão de uns pelos outros é lei e nós apenas podemos olhar e sorrir; as folhas vão sendo substituídas por outras, na árvore de uma vida que não revelou ainda todos os seus mistérios.

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