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sexta-feira, maio 29, 2009

Histórias

Histórias...

... de vida, que ninguém ouve, mas que permanecem.

O marido tinha sido invisual, dez anos atrás tinha-o visitado a ele por ocasião de uns tratamentos numa ulcera na perna – coisa corriqueira. Já na altura apoiávamos a filha do casal que, com paralisia cerebral, la ia estando exposta - como santa de veneração doméstica, no altar do hall de entrada da casa bem cuidada... tudo era bem cuidado naquela habitação... os móveis pulcros, o chão asseado, as couves, batatas e árvores de fruto do jardim... o marido e a filha... tudo bem cuidado e arranjado, tudo como deve ser.

O tempo tinha vindo e o marido não resistiu à sua passagem. Ela, no entanto, resistira à tempestade como uma rocha se ergue sobre o mar em fúria: impávida.
Lá começamos a tratar-lhe a ela uma ulcera venosa, na mesma perna e no mesmo local que outrora o marido exibira: brincadeiras da vida.

Com o passar do tempo começara a ficar vergada, seu corpo curvo como haste de arco que já não disparava flechas para o futuro incerto. Mas a vontade inquebrável seguia, e o seu tom austero mantinha as distancias, como ela mantinha as distâncias dos vizinhos e outras gentes da freguesia.

Chegou a vez da filha. Tal “como uma santinha” ela se tinha esvaído e como uma santa a queria ela enterrar.
Encomendou umas vestes brancas, véus para uma cerimónia de bodas com o criador.
Ela mantivera a altivez oculta, na forma dobrada do seu corpo cansado. Como uma vela sem cera ou pavio, assim se tinha esvaído a rapariga mulher de mais de cinquenta anos.

Umas Lágrimas e o luto mantido haviam sido os rastos que deixara a passagem da filha na areia da sua vida.

Nas manhãs de inverno, por vezes demorava-se mais de um quarto de hora até nos abrir a porta. Desta vez tinha uma vizinha amiga, ou uma amiga vizinha, que lá lhe trazia a bacia de água baixo as ordens imperiosas de quem está habituada a mandar. Enquanto lhe desapertávamos as ligaduras ela lá mergulhava a perna na água e – com ou sem indicação clínica – ela lá ia fazendo o que queria e achava necessário, enquanto olhávamos impotentes para a sua exibição de rainha sem reino ou súbditos...

Cada vez mais dobrada e só, lá vinha no nevoeiro da manhã abrir a porta do portão trancada à chave, pois os tempos não estavam para as confianças do passado – com as suas portas e portões abertos.

Agora vai já na terceira família à que tenta deixar como herança - pendente da sua própria vida - a casa e o terreninho onde viu a vida passar.

É a terceira vez que a abandonam e que tem de refazer o testamento para ver se alguém fica e dela toma conta...mas ninguém se deixa ficar e todos passam sem olhar.

Um AVC?! A dona Clotilde teve um AVC?
Sim, lá vai dizendo a colega que a visita numa Unidade dos novos cuidados de saúde Integrados. “Quando fui fazer visita com as voluntárias da paróquia encontrei-a lá. Segue fina e rija como costume”.

Depois do primeiro AVC, a coisa repetiu. A Clotilde de corpo vergado como um arco sem flechas para o futuro, ficou com a memória e a vontade vergadas de igual forma.

Agora visitamo-la – já não há úlceras no seu corpo cansado – mas a vontade e a força de outrora não conseguem vergar a vontade do tempo. Como uma menina desvalida nos olha, enquanto a Enfermeira de reabilitação procura verificar os estímulos que percebe no lado do corpo afectado. Hemiparética e hemiplégica parece ser o veredicto.

Ela lá vai olhando, olhar espantado, enquanto lhe falamos para ver se nos recorda. Lentamente, passo a passo, lá vai balbuciando uma lengalenga pouco estendível...

Talvez seja a música dos seus dias e noites, agora relatados pelo olhar de uma criança que nunca deixou de o ser – apenas esquecera as músicas que cantava enquanto saltava à corda em dias de outrora. No fundo, no fim, voltamos a lembrar o início de onde viemos. Ficamos frágeis como sempre fomos, nos braços que nunca deixaram de nos cuidar...

(Por questões de sigilo profissional, o nome da utente foi alterado. De resto, a história é bem real)

quinta-feira, maio 28, 2009

Campeões



Chegamos ao estádio do Cerveirense porque um dia pensei mostrar aos miúdos como era um estádio relvado. Encontramos gente fantástica que nos convidou a jogar – e jogámos!

Alguém se ofereceu para jogar connosco e lá começou a haver um treinador.

Depois arranjaram chuteiras para os miúdos – e eles deliraram!

Contamos com a ajuda do Armando, um veterano incansável dando tempo e fôlego para que os miúdos corram e se sintam heróis das quatro linhas…

Hoje fiquei no banco dos suplentes. Estava calor e armei em “finório”; habitualmente eles lá conseguem que eu calce umas chuteiras e que corra o campo de lés a lés… o que aqueles rapazes não nos fazem com o seu entusiasmo…

Enquanto via como se desfaziam pela bola, comentei que agora o tempo era mais difícil de gerir, cada vez dando-se mais para o trabalho que se fez competição.

O Eduardo, que é o contínuo do estádio do cerveirense, estava ao meu lado no banco dos suplentes. Lá nos riamos das caneladas do Tiago, da vontade de ir a todas do Rui ou das fintas do Luís. Ele comentou, como se não houvesse margem para dúvidas “Mas compensa, ver a alegria deles compensa bem o esforço”.

Fiquei em silêncio. Ás vezes as observações mais simples são as que trazem mais verdade; às vezes as pessoas simples, em gestos simples, trazem mais verdade ao mundo do que todas as elaborações mentais dos eruditos… eu, pelo menos sinto assim, e nesse momento senti-me pequeno perante um olhar tão profundo da realidade dos nossos pequenos grandes heróis.

Um abraço para a gente do Cerveirense, que cede o seu espaço, o seu tempo e suor para que os meninos do projecto possam sentir a alegria dos grandes jogadores num estádio de verdade. Hoje, o dia sorriu e teve rostos vários à volta do futebol.

Eles foram o Ronaldo, o Liedson bem aqui ao lado... o sonho das crianças alimenta a realidade dos adultos.

sexta-feira, maio 22, 2009

Os palhaços da vida



Hoje enfileirei por mais uma sessão de rastreios em prol de uma associação humanitária. Quem dá o seu tempo a troco de nada, quem se oferece para dar assistência mesmo quando a sua própria vida corre perigo, merece tudo o que se possa dar – chapéu para os soldados da paz. Estes são os meus “5 cent. de euro” para a vossa causa…

Calhou de ir parar a uma freguesia pequena. Num café, lá se ia atendendo como se pode. A um dado momento, vem uma senhora de negro, dos seus quarenta e poucos anos.

“Toma alguma medicação para o colesterol, tensão ou diabetes?” – pois o rastreio é mesmo nestas temáticas. Ela lá olha, olhos de vermelho, esclera injectada em sangue; pesar no seu olhar… está a tomar comprimidos para a depressão… que bem te conheço mulher!!

E, tensa, lá vai confessando que, se os valores da tensão, do “açúcar” e do colesterol não estiverem bem, ela não sabe que mais fazer. Cumpriu tudo o que mandou o médico. Cumpriu bem.

Há um olhar de reconhecimento partilhado enquanto o elemento da mesa aponta os valores num cartão. Sai uma piada fácil; ela sorri… eu também. O rosto pesado e macilento dá lugar a algo que irradia. Consigo ver a sua face pela primeira vez; talvez ela veja a minha. Ela já não de preto e eu já não de bata branca.

Rimos; nossa voz é gargalhada, ainda que na alma haja pranto.

O meu mais sincero obrigado aos bombeiros, por tudo o que fazem no dia a dia. E obrigado também a todos os palhaços que vão enjeitando horas difíceis; como um Benigni numa vida que muitas vezes não é bela.

quinta-feira, maio 14, 2009

Saudades...

Ainda anteontem estava a ver uma médica a trabalhar, enquanto esperava no gabinete por um qualquer papel que facilitasse a vida de algum utente meio perdido entre horas e obrigações.

Conheço esta profissional faz alguns anos; sei que é humana e muito carinhosa com os seus pacientes. O tom de voz era o mesmo, a tentativa de entrar em contacto com o utente era a mesma… usando o mesmo timbre maternal lá ia teclando, conferindo no monitor se a informação estava correcta…

“Agora vai levar estes dona Emengarda, sim?” e lá ia fazendo um monolooongo, falando para o seu ecrã de computador; impressora vomitando papéis com códigos de barras, enquanto a senhora idosa olhava com cara meio estranhada para a profissional que escrevia e escrevia no seu teclado, caçando de vez em quando ícones na tela iluminada com o rato de mesa…

Será necessário pensar que talvez seja imperativo o ser licenciado em dactilografia, doutorado em funcionamento de impressoras e manutenção de “hardware” ou mestre em programas de suporte à prática dos cuidados para ser bom profissional...

Saudades…

Do tempo no que a consulta era simples… duas pessoas – ou mais – cara a cara, duas realidades que se entrecruzam, dois mundos que se entremeiam e dos quais nasce um mundo novo… era o "relacionamento empático" que promovem os cuidados de saúde primários; tempo para ver, ser e ouvir sem mais delongas ou impedimentos do que aqueles pautados pelo senso comum. Ouvíamos histórias de vida e família, pegava-se em bebés ao colo ou conversava-se com crianças que vimos crescer desde o momento no que entraram na vontade de seus pais.

Crescíamos nós como profissionais e expandíamos o ser como pessoas…

Chegaram os cálculos de materiais, os cálculos de rácios, as estatísticas médias em termos de tempo de atendimento, tipo de cuidados prestados… enfim, o relacionamento terapêutico começou a obedecer mais aos números do que às humanas condições e a pessoa ficou obstruída pelos cifrões…

É dado assumido que estamos em época de crise (de valores talvez?!?) e que impera a lei do “vale tudo” para os funcionários: que o “carcanhol” é contado ao cêntimo, os lugares de trabalho calculados por rácio e os atendimentos pautados ao minuto.

Mas, no meio da guerra de trincheiras de lutas de classe, de lutas entre classes, de guerras sem classe… serão os utentes beneficiados com tudo isto?

segunda-feira, maio 04, 2009

Só o Amor




O Homem sofria; podia-se dizer que agonizava...

Naquele lar, ainda que todos estivessem lá nos seus últimos dias – às vezes anos – alguns sofriam mais do que outros... este era dos últimos que são primeiros.

Estava abandonado – mais um caso da segurança social... nenhuma visita, nenhum sorriso que trouxesse algum calor à sua rua deserta e fria, o lugar por onde caminhava desde há meses nas esferas mais exteriores da existência.
Fora maltratado pela família – um olho sempre rasgado, o mesmo que agora sangrava lágrimas de sangue em cada grito de dor física e não só...

Com uma sonda nasogástrica no nariz – aquele tubo que trazia, à rebelia, pedaços de alimentos deglutidos na máquina e directamente para o seu estômago cansado; mãos cobertas com meias para não arrancar o tubo que o obrigava à vida; para não desfazer as fraldas e pintar o quadro negro da sua existência; para retirar os pensos que mantinham as suas carnes flácidas ainda “com alguma dignidade” nesta vida...

Joaquim, com os seus 57 anos, partilhava o quarto com Manuel; juntos perfaziam mais ou menos as mesmas primaveras.

Um berrava sempre que se entrava no quarto e se destapavam os lençóis... talvez recordando a soma das dores já tidas ou berrando desde dentro do túnel negro onde naufragava a consciência da sua existência.
O outro, dizem-me, que chorava com ele no início... agora apenas nos perscruta, olhos arregalados, enquanto se faz o que se tem de fazer...

É alguma coisa da cabeça”, dizem umas - as auxiliares, enquanto a cara permanece coberta por um lenço e as compressas amparam o sangue que escorre do olho... “Óh Cristo, não derramaste tu também lágrimas de sangue por nós?”…

Supõe-se que está terminal: “O Joaquim hoje tem cor de morto”, diz uma ao seu lado... mas, logo que me achego – mesmo com palavras de conforto – e destapo os cobertores, começa a berrar... não há terminais que berrem assim.
Este homem ainda tem vida a vingar dentro de si…

As úlceras são a coisa de costume – peles e tecidos que já se negam a fazer a sua função... mortos desde dentro abrem em chaga e morrem – ou “necrosam”, como dizemos nós – e deve-se cortar, promover a “autólise”... eu seu lá bem mais o quê, enquanto o homem berra a sua dor muda...

A Jacinta chegou lá no final do penso.
Está de férias no lar, mas eu tinha dito que hoje - e durante mais um par de dias - ia passar por lá para “fazer uns pensos” e “dar umas injecções”, enquanto a minha colega está fora.

A Jacinta nunca ocultou a sua simpatia para comigo; hoje, por acaso, estava lá...

O tal Manuel - que perdera o juízo mas ainda se lembrava dos nomes das filhas - saudou-me com um “Hoje parece um artista!”... vá-se lá saber o saber que um ser destes conserva no seu interior... só a vida do Manuel já dava um filme... por isso é melhor vê-lo a “duas dimensões” para não mergulhar na sua vida e ficar preso nas teias da emoção…

A ela – a Jacinta - o Manuel saudou-a com simpatia, falou três ou quatro frases complexas, numa conversa normal... os loucos, no fim, só falam para quem os ama... ou para quem sabe amar; digo eu.

O Joaquim abriu o olho são para ela mal ouviu a sua voz... “Ele disse-me «olá» no outro dia” vai ela discorrendo (mas o homem não estava “terminal”, com uma patologia oncológica degenerativa e terminal a nível cerebral?!?). “Foi quando o sentei e lhe cortei o cabelo, ai não!”...

E fiquei assim, sem poder articular mais palavras do que “pois é”; no fundo, quem ama, sabe e os seres humanos respondem mais ao amor do que a técnicas... as últimas são prás máquinas – nós inventamo-las!

O primeiro é para nós – e foi esse quem nos inventou...


(Os nomes dos pacientes e da auxiliar foram alterados, a instituição não é referida pelo nome, de resto a história é real)

O Dom de "Ouvir"


Ouvindo as ondas, vejo o Oceano; Ouvindo o mar sinto a vida;

Contemplo a tela vivente que se depara em frente, sinto o que nela se passa; precato-me de estar vivo!

Concentro a minha atenção num sorriso de criança, numa vaga que esbarra na rocha, numa gaivota que paira sobre as ondas... e sinto a sua vida! Um caleidoscópio mágico onde a tela se desdobra consoante a atenção nela depositada...

Negar a sua existência é negar a vida; amar a sua essência e aprender das suas múltiplas leis é um trabalho delicado que, na prossecução, exige força de vontade e perseverança.

Delicadeza ao ouvir e força de vontade ao avançar; subtileza ao escutar e perseverança ao realizar; definição ao perscrutar e coragem ao concretizar; inspiração ao ouvir e compreender enquanto que sistematização e plano ao empreender…

Só o Amor Salva



Só o amor liberta, apenas o amor remove as cadeias que agrilhoam o ser.
No abismo da loucura, apenas a luz do amor penetra; na mente caótica, apenas a inspiração nos transforma em mais do que simples seres animados;

Só o amor é verdade, pois entre as sombras a que chamamos “mundo” apenas o corpo vivo do amor deixa rasto nas areias do tempo... tudo o resto é pó;

Se a inspiração desce sobre ti, eleva-te por força e vontade e ajuda a que o sonho que te foi dado se faça realidade;

Sê livre... compromete-te!