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domingo, agosto 27, 2006

Apegos

(consegues amar a criança que há em mim?)

Apegos… tantos.

Há tanto tempo que me sinto para além da máscara… a máscara tomou conta de mim, não sai e me drena – lenta e inexoravelmente – usurpando toda a vida e força desta alma até não sobrar nada mais do que pedra e pó…

Há dias… nos que os que assistimos nos assistem com intensidade tal que quebram a vitrine reforçada contra balas, atrás da qual nos escondemos para ver a vida passar sem que esta nos fira, nos toque… nos liberte.

A Sexta foi um desses dias.

Há já algum tempo que deixei de estrebuchar relativamente aos cuidados de saúde, à anedota que os valores de Enfermagem se tornaram, ao mercantilismo das instituições actuais – tudo isto é um processo disfarçado de incapacidade que visa o fundir este ilhéu de gentes paradas no grande continente de feira de “tudo a 300” no que nos enfiaram… agora é só deixar-se ir e fazer o melhor para conservar alguma humanidade.

Digo que deixei de lutar por ver a mentira da minha própria luta – eu nunca escolhi ser Enfermeiro – vim por deixar-me ir.
Todos os argumentos que possa usar caem pela falta de uma vocação ou um amor verdadeiro à causa… apenas a humanidade me fere – e essa está até nos que recolhem o lixo nas ruas, por isso – nada de nobrezas nas profissões, de profissões nobres – é a forma como vivemos a nossa vida que marca a diferença…

Mas – voltando ao tema.
Há já uns dias longos para cá que estrebucho entre faíscas de humanidade, presença e longos ermos de vazio, medo e dor.
Nos últimos mal consigo erguer o olhar para quem pelo gabinete passa, e todo o esforço para fazer algo se transforma numa sessão de tortura chinesa (com unhas arrancadas após pauzinhos de bambu queimando)… suponho que estou em depressão crónica à uns 30 anos com alguns períodos de remissão esporádica devidos a um adensamento da ilusão de ser, estar… e afins.

Há uma área que – às segundas, quartas e sextas – me dá um especial gozo e dor. Explico: tenho de fazer uns domicílios (nome genérico para as nossas actividades nas casas de utentes que requisitam este serviço).
São – regra geral - pessoas idosas, acamadas, com queixas várias e algumas escaras (feridas de pressão) para tratar.

Eu adoro sair – porque posso respirar algo de ar “puro”, olhar os montes por segundos e, de certa forma, sentir algo de “liberdade”.
Tenho de caminhar até às casas das pessoas, e isso é fantástico.

Ora, a outra parte é lidar com a dor… estou numa fase em que me dói uma injecção, uma vacina num bebé é uma tortura, um penso que não termina de curar é um calvário (sobretudo pelo desespero de não ter material para colocar lá… bem haja os economistas que nos prendem as mãos)… estou como um vidrinho… tudo me parte…

Ora – no meio disto – está a dona Rosalina.
Ela mora com o filho, não fala, tem umas escaras e – sobretudo… sorri!
Sorri tanto… e entende as coisas.. não as palavras meias… mas as que vêem de dentro. Olha para o filho (que mora na mesma casa agora e que toma conta dela) com um olhar de “saudade” misturada cm uma doce contemplação, um amor cândido e uma espera por algo mais que palavras de “crosta” que dêem coração e intensidade mais do que os circunstanciais “velhota” ou gestos meios de carinho que não se finalizam pelo medo, pelas aparências… sei lá mais porquê – merdices sociais imagino.

Os sorrisos daquela mulher – nas manhãs (que é o que mais custa) de dias sobrecarregados (falta de pessoal, falta de materiais, falta de organização, falta de paciência e excesso de doentes por época balnear) são bálsamo.
Aprendi a beija-la sempre que lá vou, a me sentar um pouco – com a minha alma de rasto sem ocultar que estou feito um farrapo – e, desde o sofá, trocar algumas palavras com ela… mesmo que ela não responda.
Às vezes canto – porque já não há mais nada a fazer a não ser pedir para desligar o raio do rádio nas notícias (fui eu quem pediu para o pôr lá para que ela tivesse algo de presenças: à falta de humanidades sempre se podem colocar lá umas vozes de caixa – como fazemos nós os “iluminados” da vida diária, com as televisões nos quartos). Suponho que o filho me acha piada…

Pelo menos, sempre que me vou, agarro-lhe a mão.
Ela não larga nada – está como um bebé (suponho que prestes a entrar no tal “reino”, se as palavras do mestre estiverem correctas) – e eu lá tenho de fazer umas palhaçadas para poder sair… o que é bom, porque já se pode deixar lá a mão do filho em vez da minha e assim ficam na conversa forçada durante um minuto, com a desculpa do enfermeiro esquesito, ela tem as mãos dele nas dela e ele não precisa fugir, porque a culpa sempre é minha…

Não sei quem dá mais – acho que ela.
Entre os peidinhos e trolhitos bem dados (que esticam até ao extremo a pouca paciência que se traz nos primeiros momentos da manha e acendem a “Hum(us)ildade” nos outros) e os sorrisos, e o silêncio que sabe e sente… fica-se entre duas terras, mas há uma sensação de ter sido esticado que é verdadeira e – de certa forma – boa.

Dói… dói a dor que sei que ela sente, dói a degenerescência do corpo… mas o que dói mais é a solidão.


A solidão de se ter filhos tão perto e se estar tão longe que nenhum toque ou palavra verdadeira surge nos anos que nos são dados para treinar isso mesmo – o abrir o coração.
O mostrar a nossa fragilidade e sentir que é amada e plenamente abraçada… até que a vida tem de vir - como um carro de lixo que recolhe as tristezas do chão para reciclagem – e nos manda para uma cama. Ai, toda a orgulhosa fachada, todo o frontispício ao qual se dedicou tanto do nosso tempo e energia – estão feitos em escaras, genitais macerados, corpos de carnes descaídas, necessidade que nos lavem as fezes e nos limpem a baba… eles existem para que nos rebaixemos ao ponto de não mais precisar de manter aparências.
Por muito que os escondamos – eles vão estar lá… o “tu” e o “eu” que serão. O quanto nos mentimos na gestão do tempo e daquilo que é verdadeiramente importante. Esta sociedade de sucedâneos e aparências, de anúncios de televisão e passatempos (como se o tempo não fosse uma medida de qualidade, mais do que um algo para se “passar” ou “matar”), de guerras e problemas e causas tão longe que até se fica com a ideia de que os mapas devem estar esquesitos – pois não sabemos sequer onde foi o tal terremoto, o tal acidente, o tal desastre de avião, o tal massacre… tudo isto é lavado.

Eles estão ali – uma estátua à nossa própria pequenez e inconsciência – para que notemos o quanto é difícil dar o essencial – amor, abertura, tempo – o quanto estabelecemos o culto das aparências – da fortaleza, da actividade, da auto-suficiência – quando somos esse ser que necessita que o agarrem da mão e o guiem em amor, carinho e compreensão – nas duas etapas da sua vida nas quais não se prende às ilusões…

Depois veio um domicílio novo, em pleno dia de caos… e eu já a ver o desastre total. Entre o meu atraso, os doentes infinitos, as faltas de material, a energia drenada…

Lá fui. Bati à porta e entrei nesta casa linda – bem arranjada, com cheiro a fresco e plena de presenças!

É algo que mata – são as casas cheias de pó de passado, de fotografias a preto e branco, de cheiros a mofo ou abafados, de limpeza “sui generis” garantida pelas assistentes pagas para o efeito.
Casas sem vida, altares à morte com culto de sombras e erradicação de esperança. Não há crianças nestas casas, não há luz, não há gentes que sintam lar ali… e são tantas… muitas das realidades dos “domicílios” actuais… doença que alastra cada vez mais.

Pois aqui havia crianças, havia três gerações de seres humanos no mesmo espaço.
Quem estava a camada era a “visa” – não o cartão de crédito (quem dera que esse fosse acamado e arrumado de vez), mas a bisavó.

Tinha sido internada por uma das irmãs da família, mas foi levada para casa por uma outra e agora estava a ser cuidada – realmente cuidada.
E – relembro, por muito que custe ouvir – cuidar, para ser holístico (isto é para as escolas de Enfermagem, que adoram a porra da palavra), tem de ser humano, emocional, afectivo e familiar também.

Estavam duas filhas, estavam três crianças, estava uma neta grávida.
As filhas como borboletas à volta da luz – preocupadas com qualquer detalhe, ávidas de querer saber mais, de comprar o que quer que fosse que trouxesse alívio ao ser amado.

As crianças a brincar com um puzzle, uma outra – de três anos – fez um belo chichi ali mesmo – no corredor.
Eu que tratava de uma escara, almoço a cozinhar, risos entre a dor… família.

Eu que queria chorar… mas tive de manter a compostura.
Chorar porque era assim que as coisas deveriam ser, porque – quem não quereria sentir aquilo?
Ninguém nos atirou para um canto da casa – num quarto qualquer longe das vistas de todos… Não! Aquela mulher estava na sala – em pleno centro da casa, e as crianças brincavam enquanto eu trabalhava. E – sabem que mais – nem se importavam, tão normal aquilo parecia que nem vieram olhar enquanto retirava pele morta de tecido desvitalizado. E ninguém as retirou – como fazem muitos – para que não vissem ou não estivessem lá. E ninguém se retirou. Toda aquela força, todo aquele sentimento estavam lá com aquela mulher… abençoada seja ela pelo amor.

Eu vim embora – sem palavras. Com algo trancado na garganta, com essa tal vontade de chorar que não sai – mas quem me dera que saísse.
Pela felicidade de ter encontrado aquele amor – aquela incondicionalidade, aquele dar tudo sem perguntar o custo - por um ser humano.
Tão anti civilizacional, tão destrutor de fachadas de tempos modernos, tão anti “auto suficiência” de “self-service” e hipermercado, tão anti culto de Homem endeusado – tão simples e tão ousado – como se precisar uns dos outros, de se estabelecer pontes de amor e incondicionalidade, tão simples como que – ao fim e ao cabo – os tais valores ainda existem.
E não estão em cursos nem em livros, picoterapeutas, médicos, enfermeiros, clínicas, lares de 5* ou merdices afins – estão naquilo que não pode ser pago ou comprado, estão nas vidas das pessoas e na sua capacidade de se entregar… pena que eu seja apenas um observador… pena.

1 comentário:

Micas disse...

Não vou deixar nenhum comentário a nenhum destes dois últimos textos.
Li em silêncio e também eu fiquei com um bloqueio na garganta e mãos.
Deixo-te um abraço apertado, porque, hoje é 2ª feira...
Bem Hajas