pub

quinta-feira, agosto 31, 2006

Do Prazer

O dia - a sua pequena faixa luminescente prévia ao regresso de sempre - foi junto ao mar. Ao regressar - abri "O Profeta" de Kahlil Gibran, lá rezava assim:

"Então um eremita que visitava a cidade uma vez por ano, avançou e
disse, Fala-nos do Prazer.
E ele respondeu, dizendo:
O prazer é uma canção de liberdade, mas não é a liberdade.
É o desabrochar dos vossos desejos, mas não é os seus frutos.
É um chamamento profundo para as alturas, mas não é profundo nem alto.
É o encarcerado a ganhar asas, mas não é o espaço que o circunda.
Sim, na verdade, o prazer é uma canção de liberdade.
E bem gostaria que a cantásseis com todo o vosso coração;
No entanto, não percais os vossos corações nos cânticos.
Alguma da vossa juventude procura o prazer como se isso fosse tudo, e esses
são julgados e punidos.
Eu não os julgaria nem puniria.
Gostaria que empreendessem a busca.
Pois eles encontrarão prazer, mas não só.
Sete são as suas irmãs, e a mais insignificante delas é mais bela que o prazer.
Nunca ouviram a história do homem que cavava a terra para encontrar raízes
e descobriu um tesouro?
E alguns de vós, mais velhos, recordam os prazeres com remorsos.
Como erros cometidos quando estavam bêbedos.
Mas o remorso só obscurece o espírito e não o castiga.
Deveriam lembrar-se dos prazeres com gratidão, tal como fariam após uma
colheita no verão.
No entanto, se os conforta sentir o remorso, deixai-os confortarem-se.
E há entre vós aqueles que não são nem suficientemente jovens para
empreender a busca, nem suficientemente velhos para se lembrarem;
E no medo deles de procurarem e se lembrarem, conseguem afastar todos os
prazeres, a menos que negligenciem o espírito.
Mas até na antecipação reside o seu prazer.
E assim também eles encontram um tesouro, embora procurem as raízes com
mãos trémulas.
Mas dizei-me, quem pode ofender o espírito?
Será que o rouxinol consegue ofender a quietude da noite ou o brilho das
estrelas?
E as vossas chamas ou fumo conseguem carregar o vento?
Pensais que o espírito é um lago imóvel que podeis perturbar?
Muitas vezes ao negardes a vós mesmos o prazer, estais a ocultar o desejo
nos recônditos do vosso ser.
Quem sabe que o que parece ser omitido hoje espera por amanhã?
Até o vosso corpo conhece a sua herança e as suas necessidades e não sairá
desiludido.
E o vosso corpo é a harpa da vossa alma, e é a vós que compete extrair dela
uma doce melodia ou sons confusos.
E no vosso coração, perguntais,
"Como distinguiremos o que é bom no prazer do que não é?"
Ide para os vossos campos e jardins e aprendereis que o prazer da abelha
consiste em retirar o mel da flor.
Mas também a flor tem prazer em dar o seu mel à abelha.
Pois para a abelha a flor é uma fonte de vida.
E para a flor a abelha é mensageira de amor.
E, para ambas, abelha e flor, o dar e o receber de prazer é uma necessidade e
um êxtase.
Povo de Orfalés, olhai para os vossos prazeres como as abelhas e as flores."


É a leitura do dia...

Lost

Afinal não dormi… e fiquei…
E fico – assim – sem ser nem querer…

Sou uma página em branco – à espera de se preencher

Fico um risco nas marés
E – não, não vou mexer os pés

Vou ficar – à espera – desse tal deus criador
Cria – dor

Que me diga – no meio de flor de lótus
E rebentos de betão
Que faço neste mundo – que pinto nesta confusão

Estou perdido… rumo sem me ver

Estou só – por vogar sem conhecer

Que local submisso, que caverna de degredo

Que sítio mais confuso onde ser é parecê-lo

Assim não dá… assim custa e não dá

Estou farto, só no escuro… e não há mais estrelas neste céu

Não sei para onde vou – não sei por onde vou – e tampouco sei ir por ai

domingo, agosto 27, 2006

Apegos

(consegues amar a criança que há em mim?)

Apegos… tantos.

Há tanto tempo que me sinto para além da máscara… a máscara tomou conta de mim, não sai e me drena – lenta e inexoravelmente – usurpando toda a vida e força desta alma até não sobrar nada mais do que pedra e pó…

Há dias… nos que os que assistimos nos assistem com intensidade tal que quebram a vitrine reforçada contra balas, atrás da qual nos escondemos para ver a vida passar sem que esta nos fira, nos toque… nos liberte.

A Sexta foi um desses dias.

Há já algum tempo que deixei de estrebuchar relativamente aos cuidados de saúde, à anedota que os valores de Enfermagem se tornaram, ao mercantilismo das instituições actuais – tudo isto é um processo disfarçado de incapacidade que visa o fundir este ilhéu de gentes paradas no grande continente de feira de “tudo a 300” no que nos enfiaram… agora é só deixar-se ir e fazer o melhor para conservar alguma humanidade.

Digo que deixei de lutar por ver a mentira da minha própria luta – eu nunca escolhi ser Enfermeiro – vim por deixar-me ir.
Todos os argumentos que possa usar caem pela falta de uma vocação ou um amor verdadeiro à causa… apenas a humanidade me fere – e essa está até nos que recolhem o lixo nas ruas, por isso – nada de nobrezas nas profissões, de profissões nobres – é a forma como vivemos a nossa vida que marca a diferença…

Mas – voltando ao tema.
Há já uns dias longos para cá que estrebucho entre faíscas de humanidade, presença e longos ermos de vazio, medo e dor.
Nos últimos mal consigo erguer o olhar para quem pelo gabinete passa, e todo o esforço para fazer algo se transforma numa sessão de tortura chinesa (com unhas arrancadas após pauzinhos de bambu queimando)… suponho que estou em depressão crónica à uns 30 anos com alguns períodos de remissão esporádica devidos a um adensamento da ilusão de ser, estar… e afins.

Há uma área que – às segundas, quartas e sextas – me dá um especial gozo e dor. Explico: tenho de fazer uns domicílios (nome genérico para as nossas actividades nas casas de utentes que requisitam este serviço).
São – regra geral - pessoas idosas, acamadas, com queixas várias e algumas escaras (feridas de pressão) para tratar.

Eu adoro sair – porque posso respirar algo de ar “puro”, olhar os montes por segundos e, de certa forma, sentir algo de “liberdade”.
Tenho de caminhar até às casas das pessoas, e isso é fantástico.

Ora, a outra parte é lidar com a dor… estou numa fase em que me dói uma injecção, uma vacina num bebé é uma tortura, um penso que não termina de curar é um calvário (sobretudo pelo desespero de não ter material para colocar lá… bem haja os economistas que nos prendem as mãos)… estou como um vidrinho… tudo me parte…

Ora – no meio disto – está a dona Rosalina.
Ela mora com o filho, não fala, tem umas escaras e – sobretudo… sorri!
Sorri tanto… e entende as coisas.. não as palavras meias… mas as que vêem de dentro. Olha para o filho (que mora na mesma casa agora e que toma conta dela) com um olhar de “saudade” misturada cm uma doce contemplação, um amor cândido e uma espera por algo mais que palavras de “crosta” que dêem coração e intensidade mais do que os circunstanciais “velhota” ou gestos meios de carinho que não se finalizam pelo medo, pelas aparências… sei lá mais porquê – merdices sociais imagino.

Os sorrisos daquela mulher – nas manhãs (que é o que mais custa) de dias sobrecarregados (falta de pessoal, falta de materiais, falta de organização, falta de paciência e excesso de doentes por época balnear) são bálsamo.
Aprendi a beija-la sempre que lá vou, a me sentar um pouco – com a minha alma de rasto sem ocultar que estou feito um farrapo – e, desde o sofá, trocar algumas palavras com ela… mesmo que ela não responda.
Às vezes canto – porque já não há mais nada a fazer a não ser pedir para desligar o raio do rádio nas notícias (fui eu quem pediu para o pôr lá para que ela tivesse algo de presenças: à falta de humanidades sempre se podem colocar lá umas vozes de caixa – como fazemos nós os “iluminados” da vida diária, com as televisões nos quartos). Suponho que o filho me acha piada…

Pelo menos, sempre que me vou, agarro-lhe a mão.
Ela não larga nada – está como um bebé (suponho que prestes a entrar no tal “reino”, se as palavras do mestre estiverem correctas) – e eu lá tenho de fazer umas palhaçadas para poder sair… o que é bom, porque já se pode deixar lá a mão do filho em vez da minha e assim ficam na conversa forçada durante um minuto, com a desculpa do enfermeiro esquesito, ela tem as mãos dele nas dela e ele não precisa fugir, porque a culpa sempre é minha…

Não sei quem dá mais – acho que ela.
Entre os peidinhos e trolhitos bem dados (que esticam até ao extremo a pouca paciência que se traz nos primeiros momentos da manha e acendem a “Hum(us)ildade” nos outros) e os sorrisos, e o silêncio que sabe e sente… fica-se entre duas terras, mas há uma sensação de ter sido esticado que é verdadeira e – de certa forma – boa.

Dói… dói a dor que sei que ela sente, dói a degenerescência do corpo… mas o que dói mais é a solidão.


A solidão de se ter filhos tão perto e se estar tão longe que nenhum toque ou palavra verdadeira surge nos anos que nos são dados para treinar isso mesmo – o abrir o coração.
O mostrar a nossa fragilidade e sentir que é amada e plenamente abraçada… até que a vida tem de vir - como um carro de lixo que recolhe as tristezas do chão para reciclagem – e nos manda para uma cama. Ai, toda a orgulhosa fachada, todo o frontispício ao qual se dedicou tanto do nosso tempo e energia – estão feitos em escaras, genitais macerados, corpos de carnes descaídas, necessidade que nos lavem as fezes e nos limpem a baba… eles existem para que nos rebaixemos ao ponto de não mais precisar de manter aparências.
Por muito que os escondamos – eles vão estar lá… o “tu” e o “eu” que serão. O quanto nos mentimos na gestão do tempo e daquilo que é verdadeiramente importante. Esta sociedade de sucedâneos e aparências, de anúncios de televisão e passatempos (como se o tempo não fosse uma medida de qualidade, mais do que um algo para se “passar” ou “matar”), de guerras e problemas e causas tão longe que até se fica com a ideia de que os mapas devem estar esquesitos – pois não sabemos sequer onde foi o tal terremoto, o tal acidente, o tal desastre de avião, o tal massacre… tudo isto é lavado.

Eles estão ali – uma estátua à nossa própria pequenez e inconsciência – para que notemos o quanto é difícil dar o essencial – amor, abertura, tempo – o quanto estabelecemos o culto das aparências – da fortaleza, da actividade, da auto-suficiência – quando somos esse ser que necessita que o agarrem da mão e o guiem em amor, carinho e compreensão – nas duas etapas da sua vida nas quais não se prende às ilusões…

Depois veio um domicílio novo, em pleno dia de caos… e eu já a ver o desastre total. Entre o meu atraso, os doentes infinitos, as faltas de material, a energia drenada…

Lá fui. Bati à porta e entrei nesta casa linda – bem arranjada, com cheiro a fresco e plena de presenças!

É algo que mata – são as casas cheias de pó de passado, de fotografias a preto e branco, de cheiros a mofo ou abafados, de limpeza “sui generis” garantida pelas assistentes pagas para o efeito.
Casas sem vida, altares à morte com culto de sombras e erradicação de esperança. Não há crianças nestas casas, não há luz, não há gentes que sintam lar ali… e são tantas… muitas das realidades dos “domicílios” actuais… doença que alastra cada vez mais.

Pois aqui havia crianças, havia três gerações de seres humanos no mesmo espaço.
Quem estava a camada era a “visa” – não o cartão de crédito (quem dera que esse fosse acamado e arrumado de vez), mas a bisavó.

Tinha sido internada por uma das irmãs da família, mas foi levada para casa por uma outra e agora estava a ser cuidada – realmente cuidada.
E – relembro, por muito que custe ouvir – cuidar, para ser holístico (isto é para as escolas de Enfermagem, que adoram a porra da palavra), tem de ser humano, emocional, afectivo e familiar também.

Estavam duas filhas, estavam três crianças, estava uma neta grávida.
As filhas como borboletas à volta da luz – preocupadas com qualquer detalhe, ávidas de querer saber mais, de comprar o que quer que fosse que trouxesse alívio ao ser amado.

As crianças a brincar com um puzzle, uma outra – de três anos – fez um belo chichi ali mesmo – no corredor.
Eu que tratava de uma escara, almoço a cozinhar, risos entre a dor… família.

Eu que queria chorar… mas tive de manter a compostura.
Chorar porque era assim que as coisas deveriam ser, porque – quem não quereria sentir aquilo?
Ninguém nos atirou para um canto da casa – num quarto qualquer longe das vistas de todos… Não! Aquela mulher estava na sala – em pleno centro da casa, e as crianças brincavam enquanto eu trabalhava. E – sabem que mais – nem se importavam, tão normal aquilo parecia que nem vieram olhar enquanto retirava pele morta de tecido desvitalizado. E ninguém as retirou – como fazem muitos – para que não vissem ou não estivessem lá. E ninguém se retirou. Toda aquela força, todo aquele sentimento estavam lá com aquela mulher… abençoada seja ela pelo amor.

Eu vim embora – sem palavras. Com algo trancado na garganta, com essa tal vontade de chorar que não sai – mas quem me dera que saísse.
Pela felicidade de ter encontrado aquele amor – aquela incondicionalidade, aquele dar tudo sem perguntar o custo - por um ser humano.
Tão anti civilizacional, tão destrutor de fachadas de tempos modernos, tão anti “auto suficiência” de “self-service” e hipermercado, tão anti culto de Homem endeusado – tão simples e tão ousado – como se precisar uns dos outros, de se estabelecer pontes de amor e incondicionalidade, tão simples como que – ao fim e ao cabo – os tais valores ainda existem.
E não estão em cursos nem em livros, picoterapeutas, médicos, enfermeiros, clínicas, lares de 5* ou merdices afins – estão naquilo que não pode ser pago ou comprado, estão nas vidas das pessoas e na sua capacidade de se entregar… pena que eu seja apenas um observador… pena.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Words as a Sword


Palavras… dizes… palavras já há demais… palavras tenho por ti e por mim…

Tristeza… é uma palavra… que te diz?
Solidão – é uma palavra… de que fala?
Que são as palavras senão ecos de uma voz mais profunda que a mente não iguala?

Como vês – só perguntas…
Certezas nenhumas, como se navegasse – num barco sem leme nem velas, nem carta de marear… ao som das marés, à espera, da mensagem deste amplo mar…

E fico-me – nos socalcos das maresias, recantos com paredes de coral
Até que a maré venha e me reviva, e me leve para não mais voltar
E de novo vogo – sem leme, sem vela e sem rumo… de novo me deixo levar
Pelas ondas – não sou eu onda da vida? – até onde elas me queiram deixar

Só palavras… insulto nefasto.
Pois sim – se nem as palavras valem, que resta?
Imagina – se lhe contasses ao artesão – que suas mãos, não…
Que lhe dissesses ao pássaro que – asas não eram
Que lhe atirasses à cara – à Primavera – que suas flores são pouco, são nada, não chegam…

Tu queres verão e frutos… espera então e contempla
Baixo as sombras das árvores
E espera, e espera e desespera…

Sem flores – espera…

Que frutos comes – pergunto eu?
Quê de tão grande te serve, para desprezares as minhas flores humildes?

Nunca engalanei as minhas paredes com troféus de guerras ganhas… muito pelo contrário – os meus dias contam-se em batalhas perdidas…

Palavras não têm poder, têm o dom que - quem quer que as ler - lhes puder entregar
O meu poder é este – o de não poder nada… mas com orgulho.

Os meus feitos são linhas numa areia que muda, num mar com meu nome escrito
E assim me sinto humilde, pois palavras são sons que passam e que apenas revivem
Nos lábios que os descobrem, que neles reparam e com eles respiram

Não queria lavrar muito mais, muita mais vida por aqui deixar – que já chega a confusão deste sítio – cheio daqueles com ganas de mandar

E assim me esvaio de mansinho – meu sangue esfria, ficam só as ditas palavras
Nelas todo o calor doentio, nelas todo o fulgor que se espalha
Enquanto eu me esvaio como um rio, que numa planície desagua
Sem mar, sem destino – veias num chão a sangrar… mais nada, nada mais…

Sê feliz com mais que palavras – mas lembra o quanto são as palavras que te arrebatam da tua pasmaceira diária
Lembra quanto as palavras te inflamaram em sonhos de vidas a percorrer
Sente o quanto as palavras acendem a tua volúpia e o desejo por tudo o que tens dentro que nunca será tocado por mãos, pele ou feito
E – quando insultares a palavra com tua própria
Sente o quanto cospes no espelho, e depois lamenta… lamenta

Um abraço – e, Adeus
A um que só tu – e eu – veremos chegar

As Coisas Simples


Como se esquece – nas esquinas do medo – o quanto as voltas e laços da vida são femininas… generosas, ternas, embevecidas… simples…

Nos claustros da mente reina um velho triste, cinzento e só…
Rei dos seus nadas, espalha a dor do seu reino, expande o Inverno do seu coração encerrado.

Nos labirintos de retóricas vãs se diverte e encanta – e assim deixa minguar os seus dias – por detrás das grades que o protegem é prisioneiro do seu próprio drama…

E – lá fora – vão e vêm fadas sem nome.
Criaturas de pés descalços em clareiras de luar, jovens de risos claros ecoando como águas de regato – cristalinas – entre as vertentes de montanhas altas como tronos.
Livres dançam nos postes de Maio, flores novas nos cabelos soltos, olhares de luz encantados pelos rostos também jovens de jovens que se cortejam – vermelhas maçãs nos rostos da vida que se sente e se vive… não se imagina nem se define.

E o velho olha desde a sua janela – gotas das chuvas de outroras já idos, pendentes num eterno aceno – sem nunca se estatelar no chão. Gelo no seu vitral, gelo…

E o tom ríspido dos seus modos apenas encontra os risos sinceros do outro lado dos seus muros pétreos, dos seus corredores obscuros e apertados, do peso opulento de mofo e pó das suas maneiras, as suas rotinas, os seus modos sempre mesmos.

E fica-se – olhando… como se houvera uma vontade sem forma – lá muito dentro. Uma luzinha remota perdida nos tempos – que ele mastiga como um pedaço de bife mastigado pelos anos, sem nunca o ter engolido ou cuspido… e mastiga e mastiga, sem lhe dar destino… e ali fica…

Até que o desdém – vem – e o arrebata.
E as portas de Inverno se abrem de par em par – sopradas por uma fúria de dor contida; e os ginetes de sombra se esvaem entre as ladeiras, procurando aqueles que sorriem com vozes claras cantando, com braços abertos se abraçando – ignorantes da vastidão de sombras que sobre eles se abate, inocentes do juízo que sobre eles ditou a condena perpétua – oblívio pelos tempos e as histórias dos copistas, ódio pelos misóginos e esdrúxulos amantes de deuses encadeados, horror pelas fogueiras de Belthane transformadas em inquisição – de purificadoras de espíritos e unificadores da paixão, se fizeram sentenças de celeumas contra a própria força da criação.

E os costumes simples se fizeram direito romano e canónico. E as vestes folgadas e os seios descobertos foram vestidos em soutanas, hábitos e aspaventos…

E perdemos… perdemos… tudo, menos este momento. No que evocamos de novo o passado longínquo no qual fomos livres – e livres seremos.

Não tarda que Roma caia. Não tarda…

quarta-feira, agosto 23, 2006

Os ermos distantes

Entre linhas rectas e becos ocos de existência mundana,

É artista aquele que dá a sua cor ao momento, às gentes, ao encontro…

É artista sublime o que dobra a esquina da rotina e se encontra com um monumento à ousadia…

É vivo o que se desliga, e vive - como quem andasse despido

É brilhante o que se enamora - da sede, da sequia, do estio

É sincero o que sente - essa tela velha e vazia do antigamente

Tudo tons e coragens – entre vida diária espartana
Gritando sem pausa a viragem
De uma época diáfana
Para um mundo novo – com virtude, inteireza e mensagem:
Libertos das cadeias – livres dos grilhões
De escravos presos no seu mundo interno
Unidos e vivos – mente e razão

Nunca mais sós…
Nunca mais pedindo aos deuses sua esmola
Sempre vivos – nunca ausentes
Em cada passo desta escola
E – para além dos sonhos e anseios
Encontrar casa, sentir voragem
Na imensidão de um momento

E viver…
Mais do que ser parte de algo –
Ser algo em toda a parte


http://www.portnoygalleries.com/gregallen/ga3708.html

Sucedâneos


De certo que reconheces isto...

"Recordo um alguém que passeava só e viu uma mulher à beira de um poço.

Ele pediu àgua e ela perguntou se estava tudo bem com ele - pois era suposto homens não intimarem com mulheres assim - daquela maneira liberta e serena... muito menos sendo ela Samaritana e ele Judeu (Galileu para todos os efeitos).

E ele falou-lhe dos cinco homens que ela tinha e da água que ele trazia para oferecer.

Uma água que calmaria de tal forma toda a sede, que nunca mais teria necessidade de beber e beber e beber...


Talvez seja essa a fonte que se procura – “underground ou at the surfice”...

Talvez..."

Agora o poema sobre o tema:

Chocolates refinados, em caixas estilizadas, anuncio fervoroso prometendo paixão…

Brisa fresca, seara sempre viva, sombra baixo árvore de fruto em pleno Verão…

Embalagens de seda, cetim e veludo - prendas que prendem em cadeias de desejo os amantes de ocasião…

Olhares simples de sorriso tímido e nobreza de lírio embalado em majestade, sentir irmão da razão…

Peles duras de sentires rijos e pulsações derretidas no caramelo sedutor… a mosca apanhada, pela fina flor engolida, sua vida sugada, sobrando a armação…

Um gesto – por um gesto – estilhaçam fronteiras,
derretem-se angústias, se desfazem barreiras,
o gelo cede ao rebentar vida nova,
olhares se encontram entre luz cristalina,
peitos se mesclam no abraço da aurora –
o amor liberta – o desejo não…

Olhares gastos, ensaio das falas, o ditador e tirano subjugando o coração…

Gestos simples de faces coradas ao se gaguejar sem palavras… ondas que extravasam o mar… e voar… nudez viva de sentir profundo, vertigem sentida na devoção…

Ecos da inocência perdida nas feridas que sangram passados ingratos, culto do sangue e da dor… punição…

Vivência sentida na entrega em asas do sonho, dançar com pés de fada entre anjos cantando no fundo dos olhos, anunciando libertação…

Por uma lágrima – da inocência perdida à remissão…

Por uma mágoa – da vivência sentida à perdição…

domingo, agosto 20, 2006

Exile

Away from green pastures of existence, we plight amongst sorrow and dust,
Roaming towards home - broken feet, shattered heart… still, we walk.

When all around seemed as echoes – distant – from that past within,
We roamed and still endured… and fighting, from lamb to lion we came to be.

Should pointing arrows hide themselves - under vanity and despair…
Then we stretch further, thin and humble, we wondered free…

Keeping burning fire alive inside, lighting candles in our eyes,
As lit stars in heavens, is hope enduring in our hearts…

When we wonder, we stray …

Tired soul dragging,
Tired eyes looking to see,
A star of light, the golden city
Amongst shades, light on me…

When we wandered, we passed away…

As the old man – sick and tired – we walked in shades,
And with shades we struggled… now we believe…

Beyond death and torment, beyond howling screams,
There’s a voice - a silent whisper – saying you don’t belong here…

Lost as we walked - may light guide tired body and broken will,
When nothing else seems there to hold us, and everything seems pale and still;

One day we stop – bloodless and cold.
Stony eyes and wasted breath as we stare…

All the rainbows of creation, all the winds of the past
Become an echo of this moment - on it a future that will last
And all shadows that once tortured, all torments we have passed
Turn to nothing in that moment, when everything is in the heart

We were slaves

Now we are free!

sábado, agosto 19, 2006

Pegadas na Areia

Não há respostas,
Apenas as perguntas
E peugadas na areia
Com rasto de linha ondulante
Que são apagadas pelas marés

sexta-feira, agosto 18, 2006

ave W eva

I am the wave,
as the wave I belong to the sea;
I have no will of my own to be given
Giving myself I roam free…

quinta-feira, agosto 17, 2006

Water fall light

A alguém que clamou por "amigo colorido", tendo em casa carcereiro:

Tens vida…

Gostaria que as vidas jorrassem livres
Como águas de montanhas vivas
E que, juntas e livres cantassem
A verdade pura que o seu mar convida…
Assim a vida – como tua voz disse –
Seria verdadeiramente colorida

Nós desatados


“Um poeta é o ser menos poético que existe, porque não possui nenhuma identidade. Encontra-se constantemente na eminência de se tornar ou ser uma outra personalidade. O sol, a lua, o mar, os homens e as mulheres, todos estes seres submetidos aos seus próprios impulsos, são poéticos e mantêm um atributo qualquer imutável; o poeta não tem nenhum, permanece sem identidade.”

Keats

Quem fará o seu próprio prato? Quem deixará as sobras do que já não pretende? Quantos comem o que está tal como é? Quantos reinventam realidade para que seja ela a ceder a sua dimensão ausente… em vez de serem eles a enfiar seus sonhos num pedaço de forno sem lume que mantém a massa tal como era – à espera – de um algo que nunca se encena, de uma peça sem drama, de um actor sem arte, de uma máscara sem olhar?

Que o cisne caia, que uma mole de asas cortadas e penas e sangue nos abafe quando éramos antes a ave que voava…

Um cisne sem mar próprio com limites nossos – o tal lago onde se passeia com majestosa altivez…

Formas…

Veladas… nadas…

Sweet dreams are made of Tears… who am I to disagree
I’ve travelled the world and the seven seas – everybody is looking for something
Some of them want to use you… some of them want to get used by you
Some of them want to abuse you, some of them want to be abused


Oiço estas linhas na mente… e vagueio…

Os que temem prendem, a mente define

As estações não existem – o homem inventa-as na sua vã glória de mandar, na sua inconsciência… pois não há tal coisa – apenas o olhar da terra sobre si mesma, ao se mutar…

Como obedece a razão ao fragmento? Como se deixa o eterno matar
Num tal cisma, numa tal forma, num tal esquecer - num tal desejar?

Quem sou?

Os que não temem amam… amam tudo – amam todos, por todos se deixam amar…



Quem sou?
Quem queres que eu seja?
Queres que te satisfaça?

O poeta é solitário – todos vêem a vidraça – nunca ninguém entra no salão…
Todos reparam na casa, todos invejam as cores garridas, todos passam… a vida não…

Ser Apolo, ser um raio fugaz…

Mas – para além da parede caiada – haverá alguém que, para além da entrada – se arrisque a mergulhar mais fundo que o salão?

Querem espelhos, querem miragens
Querem poetas de altas paragens…
Querem almas nobres para se ver e rever – querem Narcisos em flores de água
Querem… mas a minha vida não…

E temem – oh tanto! – ficar nus, sem nada
Que de vento – uma rajada – lhes leve o sombreiro de penas e então…
Ficar nus, despidos: sem forças,
Ao se ver - olhos nos olhos - na força da vida,
E se notarem presos do medo, presos - mão em mão…

Para além da miragem… queres ver… consegues ver?

Mentiras são as que mantêm esse mundo a rodar
Mentiras são as que tornam possível andar
Mentiras a meias, mentiras plenas, mentiras veladas, mentiras de ocasião…

Mulheres que amam homens do altar para fora – que alimentam desejos e paixão…
Homens que se convencem de ser mais do que pensam, de ter sentido no trabalho dos dias, de ser grandes por que alguém lhes dá razão…

Passam – todos passam…

Em dois ou três tempos a verdade te apanha – pó és… ao pó voltarás…

Talvez – talvez haja mais…

Mas - o poeta vem e liberta – das cisões, das obrigações, das imposições… das razões…

Polvo seremos… pero polvo enamorado” – rezava uma frase, graffiti num muro branco e triste, verdade escondida num recanto – mas verdade “nontheless”…

O poeta ama hoje, desespera amanhã…
O poeta não deseja o seguro do lar;
O poeta salta abismos inexplorados
O poeta ousa vender a alma ao diabo – para vos mostrar como sente o pobre coitado
O poeta dói, o poeta morre e renasce para que vocês saibam a miragem
De se sentirem aqui e agora – mais nada,
Para além do que possam pensar…

O poeta morre e renasce – para que - além do povo que parte
Se recorde o eco do coração




O poeta chora e treme:
Palhaço bizarro que geme,
Para logo subir e cantar
Entre as alturas de pasto, rebanhos de flocos algodoados
Onde apenas a brisa sopra sem pressa
Onde o mundo passa sem relógio
Onde tudo é nada e nada importa
Onde tudo é tudo - sem mais causa ou razão

E – para além das esferas cinzentas
Dos medos ocos, dos ecos sombrios
Passa o tempo a fazer que dorme
Passa o sono a sonhar devagar
Para despertar como semente no estio
Como brasa que soprada se inflama
Como ave renascida de entre o pó e a lama
Onde se vendem asas por vestes douradas
Onde pintamos a cara para não berrar
Com a beleza sagrada que se assoma e se esmaga
Do pequeno ser vivo que pensa e não dá…

segunda-feira, agosto 14, 2006

The Children of Light

When the world was young, as the grass shimmered with gold; when the light of silver tree and golden leaf made the warmth existence become full, before Sun and Moon where set apart… we were joy, we were pure, we were free… we were… just you, just me.

Hand in hand, over shaded grove and silent tree… delight and joy and naked feet…
Praised the Earth as you came to be… drop of space dressed in flesh… cup of the soul which I drink eagerly…

Smile opened mouths, as the warm crystal life flown from above - filling body, mind and soul – wet peace made within over shaded valley and peak of light… and we danced… and we danced;

Gold and silver as the light filled my eyes… blessed sparks… prayers of pure delight… rising to the expectant sky as the mirror of your eyes made light become alive…

Eyes fully opened to glance… garden’s gates opened wide… moment present is supreme - no past nor future to redeem… no bowed shoulders, no burdens… nothing heavier than a whisper to be carried…

Laughter echoed amongst the planes as hands glided over the new born wheat… and we danced… together… we danced…

Doors burst opened - spheres above, fire within…nowhere here… moment of honey and gold, tasted over smiling lips, lightning eyes fill this sky, grasping hands over waving tides – as wind upon the field of Spring, dancing inside you… and me… the Sea; tides of pleasure… simply being alive, endless joy without “why”… boundless space within and without… out of borders, beyond fiery chasms to hold the running deer as it pounces over the horizon… just you… just me… and the seed of all life in the palm of two hands becoming as one… as two trees interlaced… wisdom of ages brought back to life…

As a Star falling from the Sky I saw the light crashing upon the Earth’s womb…



Outcast, restrained…

The golden light fades, the silver vanes as we look back to the golden glade where embraced and pure – two human beings melt beyond all guilt… now we walk – together, but not as one - as we find our sight clutched to the floor, as shame covered joy, as torment subdued life, as punishment became the rule, as you became other than me…

And we wandered… stranded from the centre of life… thousands, billions… dark entities… so close – never as far.

And we suffered… away of true belonging… smile mocking of others burden – other’s burden as heavy as mine…
And we ignored… upon thrones of self righteousness our cold ass sited, blind Men guiding blind…

Purple and red we fashioned our kingly skin, of cold golden metal and stone we covered the gold within… tombs of white garment upon darkened heart – closed inside walls of fear, with chains of doubt, over locks of punishment…

One thing the Serpent did better – she explained extremely well, why the taste of the fruit was of advantage…

The Sin of God was to be alone for so long.
Used to command the day and night and all, he forgot his own spirit within clay would need more than commands to obey

domingo, agosto 13, 2006

The path of excess leads to the Palace of Wisdom…



Revendo excertos… parts of shattered mirrors… souls espelhando the symphony of creation… o prazer de ser children enamoured by the bodily image of the living goddess… Hobbits threatened by the Dark Lord, risos e vulgaridades, prazeres de vida diária sujeitos to smothering under the narrow path of the imposing mind… one ring to rule them all…

De “O Evangelho Segundo a Serpente” – de Faíza Hayat:

“A minha Mãe era um ser livre. Uma ave à solta num alto céu de verão. Costumava dizer que os homens são como as chuvas, imprescindíveis à vida, revigorantes, mas quando chegam, e em se demorando um pouco mais, logo sentimos saudades dos dias de sol!”
«Reparem», dizia, «a palavra solidão está cheia de sol!»

Gostava de citar Marguerite Duras: «Não se encontra a solidão. Somos nós que a construímos». (…) Citava Tchekov « Se tens medo da solidão não te cases.» Citava Fernando Pessoa, aliás Bernardo Soares: «As malcasadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras.»”

“(…)assim como há sol na palavra solidão, há mel na palavra melancolia”

“Fascina-me a beleza das frutas. Frutas são formas orgânicas de luz. A luz em estado vivo. (…) Os pajés, sacerdotes ou xamãs nas sociedades tribais ameríndias, acreditam que ao beberem o ayahuasca, bebida alucinogénea preparada com o caule do caapi (Benisteriopsis caapi) e folhas de chacrona (Psychotria viridis), entram em comunicação directa com estas plantas. Acreditam que as plantas os conduzem, através das sombras, pelo mundo tormentoso dos espíritos, numa viagem iniciática.
O que significa o velho mito cristão – Eva oferecendo a Adão o fruto do conhecimento?”



“Talvez a esta serena e vaga melancolia, a esta vaga e doce tristeza, se possa também chamar de felicidade. (…) Ninguém que se beija à despedida parte verdadeiramente.”

“Invejo a tua tranquilidade espelho. Tudo vês, nada recordas.
Peço-te um retrato e devolves-me um olhar. (…) Suponho que as gémeas não precisem de espelhos. Um espelho é o retrato órfão de um gémeo.”

“Eram versos de Caeiro:
«Passei toda a noite, sem dormir, vendo sem espaço a figura dela
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
(…) Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
(…) Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter de a deixar depois»

Mas porque nos apaixonamos por aquilo que nunca poderemos ter? Eu, pelo menos, tenho tendência para me interessar por tudo o que não posso agarrar: as nuvens, os arco-íris, o rápido fluxo de tempo. Um dia pensei que seria bom coleccionar arco íris. Pensei que seria bom guardá-los em pequenos frascos de cristal para que brilhassem à noite, enquanto durmo, ou alegrassem o meu dia nas manhãs de Inverno. A verdade, porém, é que se os conseguisse guardar em frascos já não gostaria deles.”



“Picasso: «Olvida usted que soy español y adoro la tristeza». Mas penso que era também o grande Pablo que valorizava a obra incompleta, porque «… sin acabar, una obra permanece viva, peligrosa. Una obra acabada és una obra muerta, asesinada.» Nunca conheci um homem acabado.”

“ (…)O que o genial arquitecto (Gaudí) dizia sobre como o sol cinzela os homens:
«As raças do Norte afogam o sentimento e com a falta de luz produzem fantasmas. Já as raças do sul, põe excesso de luz, descuidam a racionalidade e produzem monstros.»”

“Não quero surpresas. É fácil amar estrelas. Difícil é amar o próximo. E a nós mesmos”

“«Os textos são histórias», insistiu Alfonso,«um bom método é começar por perguntar por que motivo foi contada a história.»

“«Em Israel só o passado justifica o presente»”

“Sei que ela tem razão: perder a fé é perder protecção. Por onde se percorre a verdade: nas perguntas ou nas respostas?
Os Gnósticos, repetia Marcelo, procuravam Deus dentro de si, na Sabedoria, uma transcendência intuitiva:
«A salvação não é a redenção do pecado, mas da ignorância. Cristo salvou-nos pelo seu ensinamento e pela sua vida. Não pela sua carne e, menos ainda, pela sua morte.»”

“… eu sempre achei que não devemos conhecer os homens. Para não deixarmos de gostar deles.”

“Sibongile vigia os meus sonhos. «Foi a serpente», lembrou-me, «quem ofereceu aos homens o fruto da árvore do conhecimento e por causa disso eles foram expulsos do Paraíso.. Conclusão – o Paraíso pertence aos néscios».



“Sofro deste vício – leiam-me o soneto perfeito e logo tropeçarei na cacofonia escondida. Mostrem-me o paraíso e os meus olhos verão, muito para além do verde das ramagens, o fumo venenoso de uma fábrica de papel”

“FIM
(Ou melhor, o fim que se pôde arranjar. Todos os finais são provisórios)”

And now from William Blake “The Marriage of Heaven and Hell”:

“Let the Priests of the Raven of dawn, no longer in deadly black, with hoarse note curse the sons of joy. Nor his accepted brethren, whom, tyrant, he calls free, lay bound or build roof. Nor pale religious letchery call that virginity that wishes but acts not!

FOR EVERY THING THAT LIVES IS HOLY.”

segunda-feira, agosto 07, 2006

When the Lamb opened the Seventh Seal...

E o som do tambor faz tremer a terra… e o som da terra faz vibrar o tambor…

É tempo antergo em terra Cerveira… espíritos passados se tornam presentes entre bombos, folia, Zés pereiras… entre festa e algazarra…

Na praça dez homens se ajuntam – de cores próprias… tambores e bombos estremecem quem passa, ate que passa a vontade de passar e apetece ficar, ouvir, olhar, pertencer…

À roda – gregos e troianos – se deixam levar pelo rio ancestro, pelo ecoar eterno de sons mágicos… dançam connosco as tribos do passado e do presente longínquo… dançam corações que se vão perdendo das bridas… dança o desejo que se faz raiz ao escavar na terra seu ventre mãe…

E se contorcem os corpos enquanto o frémito esvoaça… esgares de prazer no poderio másculo que se elevam de faces outrora banais – régias agora, reais – enquanto o malho das eras cai e recai e descarrega sua ânsia com força na pele curtida…

E a pele vibra e revive baixo o tombo incessante de martelo patriarca, o esgar se eleva em êxtase como Zénon nunca saberia destrinçar – força irresistível contra muro inabalável, terra contra o mar…

O suor são lágrimas de corpo encarcerado em afazeres diáfanos, que do Olimpo dos comuns se eleva baixo o arquejar de tarde tórrida – e os presentes, ausentes de si, se movem já inconscientes, corações largados em torrente – bravio - ao som dos tempos ancestros… os bombos são sangue fervente… que corre, que inunda os ouvidos, o corpo, a mente… tudo.

Uma rapariga de tambor esbraceja - boneca de farrapos movida e repuxada em cordas de prazer engolindo-a em estertores irreflectidos; a multidão olha e se deleita… o fôlego prende enquanto o impossível do furor ainda se transcende… o povo grita como arvores vivas de volta ao seu chão sagrado depois de eras de desterro entre mansões frias – escuras - de prisão e verbo de forma bizarra…

E o tambor não para – coito em cúpula que atinge o clímax … são um só: gentes, homens, tambor e terra – tudo geme, tudo treme, tudo vibra, todo ejacula emoção incontida… olhos exorbitados, boca em esgar entre desejo, espanto - sorriso absorto… anseio… o povo clama, o tambor desgarra, o homem treme, a terra geme… e som termina… e o silêncio…



O silêncio é eterno… o mundo pára… esgotados os amantes todos… se aferram ao que resta do tempo sem ferros… enquanto a mente regressa em correria endiabrada, procurando recobrir o êxtase com seus tudos que são nada… e o som regressa – como um vácuo preenchido de coisas, e sons em redor – o som regressa, o vulgar som regressa… os aplausos começam, os assobios não tardam… o que sobra… é uma peugada do êxtase na nossa areia requintada… o que sobra é uma memória marcada… um algo e um algures que quase tudo, quase nada – se traz na memória do ser – oh celtas! onde vossas taças – para que as encha o hidromel de outras eras, o sabor das crianças da Terra, o sentir, a pertença, o rezar sem palavras?…



A minha verde terra arde… suas cinzas me vestem… seu fôlego me abafa, ofegante … minha terra arde…

O céu é já frio, entre o calor abafante… o Sol é vermelho sem vida, dia é noite distante… minha terra arde...

E chego ao terceiro dia, depois de ver o cadáver exangue da minha Deusa queimada, para encontrar nova luz – nova vida – por entre a noite e a morte inquietante…