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quinta-feira, novembro 16, 2006
Partilhar
Pergunto-me continuamente acerca da ostentação que se encontra para além do entusiasmo de se partilhar aquilo que se encontra e que parece fazer sentido (eu procuro o sentido mais do que a coisa em sí).
O que fica para além do entusiasmo e da partilha será talvez a ostentação... a repetição do encontrado outrora uma e outra vez - até o que era novo ficar tão vincado que se torna velho… e me faz velho.
Penso em cada palavra, cada grito de “Estou aqui!”, cada afirmação de identidade como prova da dúvida sobre a identidade própria… penso e revejo o quanto uma palavra traz de sí mesma a contradição.
Eu, palavra de poema intemporal, nota que procura o seu acorde numa melodia universal… tu: que lês e te deleitas no eco das minhas palavras, através do som da tua voz silenciosa entre as colunas da tua mente alerta.
Sabes… pondero em cada passo o valor, a validade dos reclamos de “aqui!”, “assim!”, “é!”… pondero as cobertas e descobertas, as veladas revelações…
Encontro cómica extravagância no verbo em si, mas eco vivo na causa que o gera.
Por isso me tenho recolhido no silêncio, por sentir o quanto os meus urros perturbam as ondas do rio tranquilo.
Hermann Hesse no seu "Siddhartha" disse-o tão bem e de forma tão sublime… suspiro e procuro aprender entre tanta teimosia.
No fundo ainda não encontrei o fundamento da verdade – se a partilha implica ofensa por ser incompleto o ser que se entrega (sendo incompleta a doação) ou se é no partilhar que reside uma das características do estadio humano.
Sendo o humano incompleto e incompleta a sua partilha será o doado factor de desestabilização mais do que de harmonia?
Partilho e pondero, pondero e partilho...
sexta-feira, outubro 06, 2006
Para os Distraídos...
Assim sendo, não se espanta ninguém (pelos vistos) de que haja uma reportagem muito bem intencionada e totalmente isenta de conteúdo político (…) sobre um tema no que a política não joga papel algum. “Uma Verdade Inconveniente”, com o Senhor Al Gore.
Não se espanta ninguém (pelos vistos) de que haja três películas a flutuar no imaginário colectivo e que duas se candidatarão ao Óscar na categoria de Fantasia Épica (pretendem arrancar o único galardão concedido ao género na figura do “Senhor dos Anéis” por Peter Jackson).
Estas sagas são “Flight 93”, “World Trade Center” e “United 93”, todas do ano 2006, tendo sido precedidas pela “Canção do Silêncio Cinematográfico Mundial” que durou cinco anos por via do “Luto Nacional” que era imperativo estender aos países do Oriente Médio.
No meio – os tais “neutrais” que querem “esclarecer” as coisas com pedaços de informação sacados da T.V, Revistas e Internet… muitos apenas expandem o clima de desinformação e dessensibilização de massas – o que ajuda a Oligarquia a rir-se dos comuns.
No entanto, para estes (com poucos meios fazendo trabalho meritório, suportando a chacota das massas ao ser catalogados de adeptos da “Teoria da Conspiração”) vai o mérito de utilizar imagens que todos viram e mostrar-nos como estamos absolutamente com a cabeça enfiada no traseiro quando coisas estranhas - envolvendo vidas, alterações legislativas severas, conflitos militares e afins (e nós temos a nossa quota parte – Lajes) – se passam, passam na T.V e em directo, passam-se dos limites e nós contemplamos como se fosse mais uma sessão de Big Brother ou a Banda a passar, para depois voltar à pasmaceira da vida diária e deixar a coisa andar.
Este é o detalhe mais chocante… a nossa indiferença e cumplicidade – e eu não sou menos por muito que escreva.
Fiquei chocado com a simplicidade dos argumentos que permitem descartar as explicações oficiais, fico chocado com o pouco que nós fazemos para impedir que Oligarquias persistam em moldar um mundo de acordo com um plano que não o das maiorias… afinal a Democracia é o governo de uns poucos sobre os muitos e a reprodução do tratamento de excepção sobre o tratamento da multidão.
As nossas mãos estão manchadas de sangue por persistir em manter a cabeça enfiada na areia… e não parece que haja muita vontade ou recursos para mudar – isto assusta ainda mais…
sábado, setembro 30, 2006
Pensamentos
Penso na consciência colectiva, penso em Carl Jung e nos seus arquétipos, penso no número crescente de humanos encarnados cultivando o feminino e penso na instituição dos valores de beleza e sensibilidade como predominantes, penso na nova era que se avizinha, penso…
Penso em Eva – que significa “Vida” – e em Adam (uma tipo específico de barro avermelhado que eu associo sempre a “Forma”).
Como arquétipos implicariam o feminino como conteúdo ou substrato e o masculino como forma, definição.
Veria na semente da Humanidade um todo que anuncia um germinar no qual o masculino representaria a casca e o feminino a sêmea.
Um - o lógico linear - o outro - o intuitivo; um o criativo o outro o definidor.
Ambos um sistema com tendência para procurar harmonia entre as suas partes constituintes numa correlação sincrética.
Vejo o hemisfério direito e esquerdo do cérebro procurando uma cooperação perfeita. Vejo o Este e o Oeste do Paraíso convergindo para unificar na ilha das macieiras um todo unificado com a vida e a ciência do bem e do mal já não mais em conflito, contraste ou desconhecimento da sua comunhão.
Vejo uma explosão e luz no trono – na sela turca do corpo físico – enquanto pituitária e pineal se mesclam num tom próximo…
Uma semente de casca grossa morre abafada pela opressão da sua própria estrutura que não deixa rebentar a planta a nascer.
Uma semente de casca fina esmorece e se esvai pela ausência de estrutura antes de se madurar em plenitude.
Já se matou o touro, já se sacrificou o cordeiro, já se pescaram os peixes… agora devemos encontrar a harmonia das águas que se juntam numa era dourada – num equilíbrio sem opressão ou desleixo entre a forma e o conteúdo.
Acreditaremos na elaboração do hermafrodita, na ancoragem das energias masculina e feminina em medida dourada, envolvendo os receptores físicos com capacidades de sintonizarem as cristas e cavas do “comprimento de onda” criador?...
É um desafio que vai transcender a força dos números… bem vistas as coisas, a maioria de nós - com outros corpos e outros egos – está em fase dormente e adora o jogo de contrastes que nos brinda a ignorância da nossa fonte.
É legítimo - e por isso é admirado - o estadio “humano”: pela capacidade de se “esquecer” da sua essência intrínseca - consoante com o resto do Cosmos - e viver num estado de "esquizofrenia" com seis biliões de sub-personalidades.
Mas – crendo em conceitos como “Massa Crítica de Consciência” (ver livro interessante “A Profecia Celestina” – de James Redfield), sentimos que a vivência da vibração comum a masculino e feminino em harmonia - por um número eficaz de indivíduos - expandirá a consciência colectiva para além da identificação com a fracção e o ser egoico.
Permite-se assim uma vivência que inclua os corpos físico, mental e emocional - com os que nos identificamos tendencialmente nesta era das regras e definições exógenas – e a continuidade na escada de Jacob para o intuitivo e a sua correspondente proximidade ao Todo relativamente ao plano actual.
Expandindo-se a consciência do ser e a capacidade vibratória da “aparelhagem receptora”, a consciência da ligação ao “Todo” - ao Cosmos - será imprimida em grau mais ou menos generalizado sobre a humanidade a título particular, e sobre a Terra a título geral.
Se a estação emissora mantém um sinal constante e perfeito, a capacidade do aparelho receptor determina se apenas captamos imagens a “preto e branco” com som “mono” e sem “teletexto” ou se fazemos “upgrade” ao modelo de “televisor” e começamos a receber algo mais do comprimento de onda da emissão eterna.
Os riscos das transições são conhecidos do passado: a identificação com o esquema existencial prévio, a resistência à transição, o agarrar-se às “roupas velhas” apenas procurando remendos em vez de se vestir as “roupas novas” para o “banquete”… estes factores provocam cisão, sofrimento por se “rasgar” a crisálida a “contra gosto” e sem entrega do ego para a sua morte como lagarta e (re)nascimento como borboleta.
Não se assustem – “Apocalipse” apenas implica “Revelação” ou “Visão de Futuro” - não o negrume que se tem espalhado.
Lembrar também que – semear medo, dúvida ou descrença é arte de Maquiavel. Plantar esperança, fé e amor é outro tipo de Arte bem diferente.
A decisão está na mão dos alguns que sentem como o palpitar do grande Ser - que é nossa essência - se vai alterando à medida que nos aproximamos da transição.
A nossa capacidade de entrega incondicional dita de forma directa a forma como a consciência colectiva se eleva na sua nova fasquia, expandindo a consciência individual para um patamar acima neste seu caminho de despertar como Um, ou “Todo”.
Para uma melhor compreensão do que implica o limiar de massa crítica de consciência e a sua importância no processo de transição para a "revelação" do futuro, procure-se “The Hundreth Monkey” de Ken Keys.
domingo, setembro 17, 2006
Um Lugar ao Sol
Esse lugar é a tua terra prometida, esse lugar é o teu pedaço de pertença… esse lugar existe – e vais ter de o lutar…
Vais ter de deixar atrás todas as desculpas que te deste para estares noutro lugar que não o teu lugar.
Vais ter de ousar desagradar a muita gente – inclusive a ti próprio – até descobrires quem és realmente e quanto de ti são colagens de outro lugar;
Vais arriscar ser feliz – e olha que isso custa - quando te habituas à desculpa de qualquer coisa para te aferrares à infelicidade que te define como quem não és, obrigando-te a estar onde não queres estar;
Vais arriscar ser e ter prazer – à tua maneira – para além das convenções e das regras, até sentires bem, até te sentires bem... o teu lugar;
Vais experimentar caminhos fáceis, vais falhar, vais levantar outra vez, e voltar a cair… e de novo recomeçar, não compreendendo o que te motiva a erguer, o que te motiva a andar... mas sabes que existe... o teu lugar.
Vais-te perder e re-encontrar - tantas vezes que vais começar a sentir-te louco… isso é bom – estás mais perto do teu lugar e de ti mesmo e mais longe de todos os outros lugares que – ainda belos e soleados – são lugares de outros, não são o teu lugar.
E vais curtir – as tuas fadigas e cansaços – os teus dias de sol e de paz… e uns e outros terão um mesmo valor – não mais te vais queixar da carga quando sentes que a carga te faz avançar… te impede parar… te obriga a lutar… porque há um lugar...
Vais encontrar um lugar…
quarta-feira, setembro 13, 2006
The Four Loves
Alguém me enviou palavra sobre os amores, sobre Deus e sobre C.S. Lewis.
Ainda não li… hoje estou doente, a cabeça está latejante – por isso talvez seja um dia bom para “entender” o amor…
Ficou uma frase comparativa sobre o Amor e a tal Presença constante…
We cannot see light, though by light we can see things
Fico a meditar nesta frase de Lewis… eu que sou cego…
D or D existir
alma inerte o amor já não toca … pele fria o desejo não toma… Pã se funde em dimensões semelhantes… pintura imitando uma tela em branco se definha…
Conta-se ao velho ofegante em estertores lívidos o segredo de longa data - eternamente ansiado - que sempre repousara (desapercebido) baixo o seu olhar… um último esforço para o ver de soslaio, enquanto alento vital esvai do corpo retorcido por peso de tempo sustido sobre ombros gastos…
Nada esperar, desesperando da própria força ou vontade… inspiração fluindo como folha caída em Outono precoce – amarela e seca em águas de rio corrente… vida pálida sobre vida transparente… juntas abraçadas em direcção ao mar
Caminhando entre urros roncos na batalha encarniçada, a criança resvala – qual sombra pálida – olhar fixo num nada distante… sangue escorre, feridas abrem… ela se esvai nas sombras indistintas, ecos de sons baços no horizonte irreal…
terça-feira, setembro 12, 2006
Tratamentos
Pensava nas perguntas que respondera momentos antes de entrar na sala de tratamentos – o tema roda à volta de quando vou ter filhos (“Não posso – a ciência não chegou lá ainda anjo” - a piada de costume para fugir a um tema não muito agradável para mim)…”Você não, a sua mulher!” (Não sou casado)… "E quando vai casar?" (Não tenho com quem)… “Ai não acredito – tão simpático e jeitosinho.. olhe tantos que prai andam sem jeito e tantas mulheres por ai tão mal”… (Pois…)
Este costuma ser o ciclo de conversas em roda da vida, sempre que pego nalgum bebé ou brinco com alguma criança no corredor… não me apetece entrar muito em detalhes acerca da minha consciência recém adquirida sobre a possibilidade de o casamento (como os sacerdócios e essas tretas) serem algo vocacional e não apenas um conceito meramente estatístico ou maneirismo mental (macho, fêmea iguala produção de vida conjunta – veja-se macho ou fêmea conforme se quiser interpretar – e criancinhas para animar a festa – como as velas sobre o bolo de chocolates variados).
Desta vez veio o marido.
Ele é um ano mais velho que ela… mas parece uns quinze anos mais novo.
“Então e a neta?”… pergunto para o típico diálogo cândido que derreta o estéril e vazio quadrado da sala de tratamentos…”Não veio”… diz ela com o olhar engraçado em contraste com a postura centrada do “respectivo”… “Bem – e fotos, trouxe?”… “Não que têm namorado”… diz ela em meio sorriso maroto…”Ah! Bem, assim então já não quero… e não há nenhuma que esteja livre?”… vou cortando a ligadura debaixo do olhar supervisor dele…”Há uma há… mas…”… ele entra no baile de coisas já não sérias: “Não é para si que você já tem ocupação”… demoro uns momentos a compreender – horas da manhã são mesmo lerdas… “He, he – não ando por ai”… “O senhor não é casado?”… (lá voltamos ao mesmo)…
Ele abre-se…
“Pois olhe – no meu tempo – até me pagavam…”; ela ri-se…
“Você está a ouvir o que ele está a dizer?”…
“É verdade… ele sempre foi assim”…
“Eu era fodido quando era novo”
Eu fico meio “abananado”… sempre é verdade, não está a brincar…
À medida que esta “confissão com humor” se desenrola com o realizar do penso, vou-me fascinando e seduzindo no à vontade e singeleza dela, no ar despreocupado, orgulhoso e livre mas igual a si mesmo do tom dele – entramos num corolário de aventuras e peripécias enquanto casados e ela vai rindo com o olhar enquanto um carinho profundo se nota muito mais forte do que qualquer coisa que se pudesse esperar…expectativas aqui não ofuscaram um caminho a dois com mais de quarenta anos… agora à separações pelo rolo de papel gasto que não vai pró caixote do lixo… confuso...
“E – a sorte dela é que tem bom pensar…”
“Ela deve ser é muito sua amiga…”
Ele não deixa escapar nada – desde a Índia até às notas de cinco contos na lapela, depois de ele sair da casa de uma amante… ela complementa – que a outra, sendo casada - ainda lhe dava a ela atum e legumes…
“Mas – que tem ele assim de especial?” pergunto … ela responde descontraída: “Nada, nunca lhe notei nada de mais, mas é assim olhe”…” Bolas – para ser assim tão concorrido devia ter qualquer coisa – não?”… o penso já está coberto, falta o adesivo…
“À volta de casa tinha três… e o resto…”, diz ela – sem pena nem agravo.
“Olhe lá – e você, nunca…?” … ele olha de soslaio, procurando manter seriedade, ela responde: “Eu? Oh, eu tinha os filhos” (foram nove – ou seja, sempre ocupada… e bem, pelo que diz).
Saem satisfeitos – ele diz que lhe vai fazer um bolo, e que vai meter muita chouriça… hoje ela faz setenta.
Rimo-nos todos enquanto abro a porta da sala.
Seco as mãos ainda a rir-me… caramba, ainda diziam que isto das relações abertas pertence aos tempos modernos… e estes nunca fizeram terapia de casal… bolas!
segunda-feira, setembro 11, 2006
Luto
Foi durante a manhã: “Pode-me tirar a tensão Sr. Enfermeiro? Não me tenho sentido bem ultimamente”.
Manhã de Sexta, agitada – pensos e consultas por “milhares” – (hoje estou bem) dou um sorriso e faço uma piada para ajudar a que aguarde mais uns momentos, de forma a ter espaço para a atender: “Não – não posso – se lha tiro, você morre”.
Rio e ela ri comigo, os utentes em volta sorriem.
Minutos depois estamos na sala, pergunto se está tudo bem…
“O meu filho morreu”… “Trinta e quatro anos e foi assim, do coração”… “Você conhecia-o” (ela mostra a foto – conheço).
Há dois anos foi o namorado da minha filha – acidente de carro - você é de Valença, devia conhecer (mais uma fotografia… sim, conheço)…”
(O silêncio)
“Assim, de repente… ele nunca falou em morte… assim fica-se revoltada” (O choro – e eu olhando nesses olhos vermelhos – não há palavras)
Assim de repente… sem meias medidas… ainda há pouco tempo estávamos a rir de uma piada e agora estamos aqui, a sentir o peso da falta, o vazio que fica quando alguém que parte nos deixa…
Procuro imaginar o que será uma morte assim – repentina – de um filho.
Não consigo… não sou mulher, não sou pai… que fazer?
O silêncio é uma tal arma nestas lides e – no entanto – com o passar do tempo, fica-se tão enferrujada pela falta de ambiente para se exercitar…
Carpir a dor… chorar com quem chora.
Um toque para que se sinta presença.
Não há palavras… as palavras não são para confortar quem chora, mas para nos defender a nós do sentir bruto e exposto ao se abrir o peito para a dor da perda…
Melhor viver um pouco na cabeça, amparar a queda, pára-choques da evidência de que tudo passa, de que não ficamos… nem os que amamos…
Ensaio algo mas não me sai.
O luto é mesmo assim – não há palavras.
Ela de negro – eu de branco.
O meu braço no dela, lágrimas que resvalam em silêncio, dois olhares que se encontram.
Ela partiu, eu fiquei… negro no branco.
domingo, setembro 10, 2006
Non ti Muovere
Amores estranhos, amores impossíveis… amores bizarros… quem escreveu as linhas que limitam esse algo a que chamamos “Amor” enquanto o não sentimos? Porque – se o sentimos - nem tempo temos para lhe chamar amor, muito menos vontade de o definir, de o ver em perspectiva, de o escrever ou de sequer o procurar reduzir com circunflexões bizarras atadas a termos e restritivismos…
Um filme que dói… “Não te Mexas”…
Penélope Cruz duas vezes violada pelo pai no espaço de dois dias, em dois filmes diferentes, por realizadores diferentes, de países diferentes… não há coincidências…
Dói o impacto da dor geracional perpetuando-se em relações bizarras, em indiferença, em canibalização dos próprios filhos por pais, “Chronos” da nova era, que matam a vida e escondem o amor baixo camadas de indiferença tão pesadas que a luz até se assusta ao se achegar…
Uma história de conflitos com as aparências, de sentires desviados das ruas normais – como a casa de “Itália” (Penélope Cruz “parlando” Italiano como mulher “vulgar” de guetos citadinos) – uma casa isolada e pobre, no meio de uns blocos de apartamento em construção.
Uma história de contradições – como as mentiras e idiossincrasias de Timóteo – o Cirurgião frustrado, com raiva contida pelo pai indiferente que o abandonara no passado, caminhando para o mesmo túmulo de vida não fosse um acidente fortuito numa estrada abandonada lhe revelar o caminho para a lama onde habita o coração de espinhos de Itália… lama e sangue que, após um dos romances mais intensos, carnais, bizarros e quase a despropósito na tela das verdades meias – termina com uma apoteose de vidas misturadas numa história bem terrena (que se agradece – face a tanto sucedâneo do outro lado do mar, apenas impressionando pelos efeitos pagos a orçamento e nunca pela intensidade ou ousadia de se revelar a pele ferida baixo a máscara social).
Pelo meio ficam as outras histórias – as mentiras que se entretecem em meias verdades – como as saídas da mulher de Timóteo – sempre ausente e em visitas que parecem fictícias ao estrangeiro, as insinuações de paternidade dobrada perante uma filha que começa e termina a história e – como o nome: Ângela – termina por redimir em lágrimas quatro vidas completamente destroçadas no labirinto de sem sentido no que às vezes esta experiência de vida se torna.
Uma fita que dói, que emociona, que prende.
Porque é Italiana talvez, porque mostra o baixo e o alto da carne humana como envelope do desconhecido da alma que a veste, que contrasta tanto e tão bem tanto estilismo de além mar que aborrece como uma caixa de bombons comida e recomida até à exaustão…
sábado, setembro 09, 2006
To Really Love a Woman
Uns olhos lindos – verde claro, um sorriso magnífico e um porte esbelto – ficou-se na porta do gabinete – adornando o corredor vazio.
Não fala – raramente inicia uma conversa… fica-se por ali, como não desejando incomodar mas necessitando um olhar… e eu olho, feliz por contemplar.
Hoje estava em baixo, mas a sua beleza merece sempre um comentário – e eu não costumo poupar o belo que se vê sem o partilhar com quem assim me embeleza:
“Está linda hoje, os brincos são muito giros… novos não é?”
Não a via desde que terminara os tratamentos, mas é sempre uma brisa quando alguém simpático, interessante, de vida profunda ou beleza irradiante nos visita no gabinete dos dias… tornam o dia mais belo e beleza com beleza se paga.
“Vai à consulta? Espero que seja rotina…”
“Ando tão em baixo Sr. Enfermeiro” – Dizia ela com a sua voz nasal… hesitante.
Entra – parece mais só do costume. (Como nos sentimos em tantas ocasiões nas que um abraço curaria o mundo e a alma… nas que um silêncio sincero - de quem ouve com o coração aberto – nos faria sentir longe da solidão…)
“Sente-se, que se passa?” digo mais alto do normal pela sua falta de audição…
“Está a custar tanto…”
(Lembro que fora operada – mais um tratamento nas centenas que passaram o mês passado pela sala… que tinha sido?… algo abdominal, talvez?)
Enquanto a ouço – ouço dentro de mim algo que diz “Mea Culpa”. Neste “Ágape”, declaram-se as culpas do estereótipo masculino que a alma veste, para assim poder celebrar com dignidade… condignamente.
O cirurgião tinha-lhe dito – peremptoriamente e sem dialogar – que “aquilo” era para tirar. Que só servia para ter filhos e que ela já tinha passado dessa idade.
(É tão difícil nascer homem e ancorar a energia feminina suficiente para amar com devoção esse ser lindo que encarna o feminino no seu auge.
Braços para abraçar e mimar, proteger, dar atenção, dedicação, tempo, presença, foco – que seja ela a única mulher no nosso mundo e a mais bela, a mais luminosa, a que é para nós com certeza rotunda e absoluta…).
“Mas – e se eu lhe tivesse dito que lhe ia tirar os testículos – será que ele estava assim tão pedra?! Se soubesse que isto me ia deixar assim”…
(O masculino – na sua versão ainda em desenvolvimento – vira-se para coisas que considera tão “práticas” - que termina por construir um mundo de aparências nas que – o tempo que é medida de qualidade mais do que quantidade – se desfaz em trivialidades.
O masculino não aberto para amparar, para ouvir, para dar tempo a detalhes que são tudo e o que verdadeiramente importa; tão longe por vezes do abraço terno que se oferece a um bebé, na devoção que se aprende ao cuidar – ao mimar a próxima refeição, ao sentir gratidão pela lição de humildade e serviço nas fraldas dos idosos acamados cuidados por saias durante centúrias - ignora o dom da entrega e o amor profundo, simples e devoto que o serviço implica. O feminino sabe…).
“Mas é tão diferente… eu amo o meu companheiro actual – ele é mais velho e está a terminar um divórcio litigioso que nos rouba tanta vitalidade.
O amor está cá dentro na minha cabeça – eu sei – mas agora o corpo não responde, não sinto desejo…”
(Soluções… penso em soluções… tão difícil apenas sentar-se e ouvir… que arte refinada que custa tanto a engolir… fel – estar ali, exposto. Apetece falar, parar aquilo, dizer qualquer coisa: “Abra-se com o seu companheiro – diga-lhe exactamente o que me está a dizer a mim – talvez encontre o abraço que está à procura”… será que isso resulta? A prescrição óptima em palavras… o curador certeiro da alma humana…
Não – as coisas não são assim – o que torna algo importante é o tempo dedicado, a imperturbabilidade da presença que não se arreda mesmo quando dói e a profundidade da dor que se aceita partilhar).
“E eu que fui sempre tão activa – agora não poso parar, logo gora que temos tantas dificuldades pela frente – não posso descair”
(Vês?...)
“ E disseram-me do tratamento de hormonas sim… mas disseram também que posso engordar – e eu não quero ficar gorda, logo agora que estamos no nosso primeiro ano de relação… o médico ainda disse que isso depois passa… mas ele não percebe”
(Tão lindo o feminino – quando se dá em gestos de esmero pelo belo que representa o aspecto, quando se sente agradável à vista do amor e recebe os piropos com graça e vida.
Está linda hoje, os seus olhos brilham – e são tão lindos nesse verde. - Ela gostou da nota – Hum – traz uns brincos novos hoje – ficam mesmo bem – E eu tinha dito isto mesmo antes de ela se ter confessado. Isso foi bom – fez com que se risse em tom gasto).
“Agora já custa tanto. O meu filho mais velho deve ter a sua idade” (e tem).
“Estão sempre a brincar comigo – Arruma-te, agora já não tens idade para essas coisas.
O mais velho até dizia “Tu antes competias com qualquer uma das minhas namoradas mãe – agora…” (Ela sabe-se bonita… agora sente-se cansada… gasta… incertezas… susceptibilidades… manter aparência forte).
“Os homens são algo distraídos… sabe… às vezes não notam o quanto os comentários em tom de brincadeira, que eles pensam que ajudam, podem ferir”. (O que elas reparam).
“Estive casada vinte e seis anos. Não que o meu marido me maltratasse, mas a indiferença dói mais do que muitas coisas…”
(Sei… o masculino tem tanta dificuldade na devoção e no alimento constante do amor. O “principezinho” era criança linda… não era adulto. Se o fosse, a Rosa nunca teria redoma, protector do vento e água todos os dias a horas certas e a primeira coisa que ele perguntaria ao aviador perdido no deserto, não seria por uma ovelha, mas sim por uma guia de estações de serviços).
No Final oferecemo-nos um abraço. Um abraço desses que tocam peito com peito – para nos lembrar apenas o como todos os corações estão entrelaçados…
Fica aqui a música que ecoou na minha mente, enquanto ela voltava para a sala de espera… é para todo o feminino que ainda não aprendi a abraçar.
To really love a woman
To understand her you gotta know her deep inside
Hear every thought, see every dream
N' give her wings when she wants to fly
Then when you find yourself lyin' helpless in her arms
You know you really love a woman
When you love a woman you tell her that she's really wanted
When you love a woman you tell her that she's the one
'Cause she needs somebody to tell her that it's gonna last forever
So tell me have you ever really really really ever loved a woman
To really love a woman
Let her hold you 'til ya know how she needs to be touched
You've gotta breathe her, really taste her
'Til you can feel her in your blood
N' when you can see your unborn children in her eyes
You know you really love a woman
When you love a woman you tell her that she's really wanted
When you love a woman you tell her that she's the one
'Cause she needs somebody to tell her that you'll always be together
So tell me have you ever really really really ever loved a woman
You got to give her some faith, hold her tight
A little tenderness, gotta treat her right
She will be there for you takin' good care of you
You really gotta love your woman
And when you find yourself lyin' helpless in her arms
You know you really love a woman
When you love a woman you tell her that she's really wanted
When you love a woman you tell her that she's the one
'Cause she needs somebody to tell her that it's gonna last forever
So tell me have you ever really really really ever loved a woman
Yeah
Just tell me have you ever really really really ever loved a woman
Oh
Just tell me have you ever really really really ever loved a woman
P.S - Hoje foi dia de Almodóvar e de "Volver" - um feminino engraçado num olhar sobre coisas bem sérias. Há femininos com rosto de Homem...
quinta-feira, setembro 07, 2006
Os Três Desejos
O génio olhava com seu ar altivo, desde o cimo da nuvem evanescente, enquanto o pobre Aladino cogitava sobre os desejos de que gostaria ver cumpridos…
Sentiu – sentiu bem fundo – e viu a sua solidão… sozinho lá na cova dos quarenta ladrões…
Sentiu – sentiu bem à flor da pele – a dor fina que se entranhava nos tecidos como agulha entre feridas laminadas curadas a álcool 97% - a necessidade de ser tocado, de ter calor, de se perder em outros braços que não aqueles que o abraçavam em noites frias até descobrir que eram os seus próprios braços que lutavam o gêlo…
“Quero uma mulher”– disse ao génio…
O tal ente riu para os seus meandros – e questionou:
“Queres realmente o que me pedes?”
Aladino disse tremendo: “-S-sim”…
“Abracadabra!”… o génio fez o seu passe de magia e desvaneceu no ar.
Em seu lugar – entre a névoa que se esvaia – foi surgindo uma imagem. Aladino olhava… entre o ansioso e o agitado – enquanto surgia… um tornezelo escanzelado, uma anca emagrecida, um ventre mirrado, um peito seco e desgastado, um cabelo fino e frágil, um olhar gasto pelo sol…
“Por Alá! Que feitiçaria é esta?”
Olhando em redor – a mulher logo reparou em Aladino – que não terminava de crer naquilo que via perante os seus olhos… como se fosse uma triste jogada do destino:
“Fome… tu ser bom para comer?...”
“B-bem… eu… s-sou… Ninguém!”
E – sentindo-se completamente perdido, Aladino desatou a correr pelas areias do deserto, até deixar atrás a entrada da sua cova e a companhia solitária dos seus quarenta Ladrões.
Procurou algo de conforto numa aldeia próxima.
Como era alguém inteligente e algo simpático, logo conseguiu emprego numa das lojas de especiarias que serviam as caravanas na sua passagem rumo a Medina.
Mas – cedo se cansou da rotina – as horas eram iguais aos dias, os dias parecidos aos meses, as gentes iguais aos anos… sempre as mesmas.
Um dia, ao entrar no seu quarto (como era parecida aquela mesma entrada à entrada que lá estava ontem, como era igual o que nela passava…), só e cansado da rotina – frustrado com a sua vida rodando em círculos - deu um pontapé num baú à beira da sua porta. Tombando no chão - suas magras pertenças expondo - esparramadas pelo chão do quarto. Entre elas, o brilho do bronze velho despertou o seu interesse…
Lá estava a lâmpada mágica, lá estava a porta para que o seu mundo mudasse…
É claro que Aladino – desde a sua última experiência com o génio – ficara descrente dos poderes da lâmpada para lhe oferecer algo que ele realmente pudesse sentir como magnífico.
Mas – nesta pasmaceira, neste túmulo de rotinas diárias que levavam ao mesmo balcão, às mesmas pessoas que levantavam às mesmas horas, faziam as mesmas coisas todos os dias e deitavam às mesmas horas, que nunca viajavam como as gentes das caravanas ou faziam algo que fosse diferente, Aladino já não se importava se o Génio lhe oferecia algo que o assustasse como o fizera outrora.
Esfregou a lâmpada e – o génio – devagarinho, lá se foi materializando.
Parecia algo contrafeito desta vez, como se desperto de um sono prazenteiro por um oportunista indesejado, mas – cumprindo o seu dever – lá se prontificou para realizar o desejo do necessitado.
“Quero uma mulher que seja interessante.”
O génio – com olhar compadecido – olhou para Aladino com um certo ar de “Oh céus – por favor – outra vez?!?!”…
“Tens a certeza que é isso que desejas?”
Aladino, tremeu e disse “Sim”…
“Seja”
O génio desmaterializou-se e – enquanto o fumo se esvaia – logo ao longe aparecia uma caravana trazendo uma carroça coberta de tecidos finos e cores garridas.
Aladino – com a “mosca atrás da orelha”, lá se ficou – braços em jarra – esperando pela comitiva.
Todos na companhia falavam em altas vozes (coisa que inquietou o nosso herói).
A que mais alto falava era uma mulher – em vestes de seda e ouros por toda a parte.
Aladino não lhe achou muito interesse de início (não fosse pelas altas gargalhadas e pelo aparente à vontade que desprendia a insólita senhora).
Ela logo se abeirou, puxando conversa. Aladino ficou sabendo dos seus múltiplos périplos por terras de aquém e além mar. Ficou extasiado com os seus romances e aventuras mil.
Xerazade (este era o nome da nossa jóia) era casada com um Sultão que – outrora – a quisera matar (sabe-se lá por que despropósito).
Agora – Xerazade viajava para ganhar experiências novas com as que entreter o seu Sultão (ainda que Aladino começava a sentir que - o que o Sultão fazia agora - era pagar para ter a tal Xerazade bem longe).
Aladino contou acerca da sua vida na cova – Xerazade achou o máximo – tão “chique” e fantástico.
Disse que era “inovador” e “ousado” (Aladino pensou que seriam termos novos para “fome” e “necessidade”, mas não a quês interromper – ainda que, mesmo que tentasse, não me parece que tivesse tido sorte).
Ela mesma conhecera um “Guru” (Aladino já se começava a perder entre tanto estrangeirismo) que habitava um “Ashram” algures nas montanhas e que fazia não sei quê Yoga e que era “Tan-“ qualquer coisa e que… (neste momento Aladino já desligara o gravador, de tanta diarreia mental que vinha a despropósito da incombustível Xerazade).
Como se a coisa não fosse a nenhures (e Aladino já começasse com o típico “Ah… bem… sim… p-parece hora de v-voltar para casa… hum… ahm… hora dos morangos com a-açúcar – s-sabes?”), Xerazade disse que um ser tão espiritual como Aladino deveria conhecer as artes “Tântricas” para melhor fluir a sua “Kundalini” e assim ouvir, sentir e ser “Nirvana” (Aladino ainda esteve para lhe perguntar se o tal Nirvana não era alguma música estranha estilo “Dervixe” – mas como era a única palavra esquisita que conhecia decidiu não arriscar, não fosse fazer figura de parvo frente a tal espavento colorido de emoções acavaladas em pensamentos).
Deitado na cama, com as pernas no lugar dos braços, e os braços no lugar das pernas, com a língua no nariz e Xerazade esparramada sobre ele – Aladino decididamente sentiu-se como o último rebuçado na vitrina da única pastelaria da aldeia das crianças…
Quando ela se levantou para ir à casa de banho – anunciando que tinha sido uma vigésima tentativa interessante e que poderiam manter os próximos meses de prática até que a “Energia” “Fluísse” sem “Miasmas”, Aladino – conforme o seu motto (esta foi do tradutor) de vida “Quanto mais rápido mais longe, quanto mais força mais rápido”, esfumou-se imitando o nosso génio da lâmpada.
Correu, correu, correu… até já não mais sentir vida no seu corpo inerte.
Quando despertou estava sobre uma rocha. O dia findava, o Sol punha-se sobre as palmeiras, havia apenas o som da brisa nas suas folhas e uma expectação contida no ar - ao mesmo tempo que o sol se aproximava do seu ocaso, da sua linha final, do seu entregar à terra para renascer outro, num outro dia diferente.
Aladino sentiu as costas aquecer na pedra, sentiu a dor dissolver no ar soprando suavemente, sentiu o seu pensamento escoar na brisa que passava, sentiu seu coração embalado no doce e morno sentir do sol que se esvaia…
Envolto – como de novo no ventre materno – por toda esta natureza foi deslizando, esquecendo ser ele, esquecendo as suas necessidades e desejos, esquecendo sequer pensar, sentir…
O Sol esvaía-se enquanto ele era felicidade.
“Isto é mais do que eu poderia desejar… isto é tudo o que eu quero” – escapou-lhe em voz calma e serena, deitado sobre a rocha morna, sentindo-se parte de tudo, tudo o que sempre sentira em falta nesse momento era nada…
“Concedido” – ouviu-se uma voz dizer.
Enquanto Aladino se virava – assustado pela voz – sua veias gelaram, sua pele endureceu, seus olhos se apagaram ao mesmo tempo que o Sol desaparecia no horizonte.
Ficou apenas uma rocha – que parecia a forma de um homem contemplando o Sol pôr…
Sempre que passam turistas, os guias explicam a história de Aladino e a sua lâmpada dos desejos.
Eu vi o génio um dia – vi o seu olhar de ironia - enquanto esculpia, na pedra fria, uma frase que lá perdura:
“Os desejos dos homens são loucuras, o fim das loucuras é sono eterno”
Vi como se levantava, como se esticava – como que remexendo uma enorme preguiça de dentro de sí.
Vi como se esvaia em névoa – sua gargalhada ecoando na pedra.
Primeiro transformado em mulher de vestes ostentosas e sedas de cores garridas, depois numa outra mirrada e seca, finalmente num espelho de prata que se ficou flutuando sobre a bruma da manhã até ser poça de água no solo árido do deserto.
Eu – que já conhecia a história – fiquei-me entre os arbustos, esperando que a próxima caravana de turistas passa-se para ver a inédita pedra de Aladino. Hoje teriam uma surpresa se olhassem de perto… ou mais, se olhassem no espelho cobiçando a água entre o deserto da vida….
quarta-feira, setembro 06, 2006
Letras de Criança
Redondas, estilizadas, com esmero, rodopiando as curvas, grandes, abertas, com tempo e deleite na sua elaboração, ecos de passado com lufadas de ar já respirado enquanto as tecia e entretecia nos postais…
Hoje – e ontem – como o serviço demandava a convocatória de crianças com vacinas em atraso – decidi parar a resistência (é uma tarefa chata e repetitiva) e procurar um ponto de originalidade que torna-se o peso em virtude, o custo em ganho.
Dei por mim a lembrar o quanto as assinaturas revelam a personalidade de quem escreve.
Olhei para a minha letra… quando era pequenote (não que tenha crescido muito – ainda estou na média) diziam as meninas (e se elas dizem – relativamente a letras – isso tem valor pois elas mantêm-na redondinha e ajeitada… regra geral) que a minha letra era muito gira.
Olhei para os gatafunhos que se estendiam nos registos de enfermagem em redor – stressados, tensos, indistintos, feitos à pressa, sem muita atenção, com palavras bem ocas, repetindo coisas já escritas, sem pinga de personalidade, sem alma… e reparei na minha dormência…
Juntando o útil ao agradável – sentei.
Puxei as resmas de postais, as listas de crianças a convocar e – desta vez sem sentir tanta dor só de pensar no tempo, paciência e outras coisas e tais que exigiria a situação… escrevi a primeira letra.
Foi um “E” maiúsculo.
Ao princípio custou.
Só faltava esticar a língua cá para fora, ladear a cabeça e sentir como no pulso faltava a destreza e leveza para traçar a letra com o seu habitual floreado, com as curvas elegantes e artísticas com as que adorava decorar cada tracinho daqueles que – unidos num papel – criavam uma mensagem, um algo que havia vindo de algures, que havia passado por mim, e que tornava nova forma na resma de papel em branco – com linhas ou quadradinhos – que se transformava em poema de re-criação.
Era assim como me sentia em criança – co-criador (esta palavra não a sabia na altura, mas como já li muitos livros - opa! - aproveito e dou uma de “erudito” pelo não dito) - perante o caderno de “deveres” pautado com linhas para enquadrar as minhas letras.
Enooormes de início – bem que levaram uma catrefada de trabalho para se “enquadrar” nos cânones (régua em latim, como as reguadas que – de quando em vez - lá caiam por assuntos disciplinares diversos).
Lentamente – um prazer enorme foi crescendo da actividade tão diáfana em aparência.
Senti que compreendia a mensagem oculta mostrada no filme “Hero”.
A cena corresponde a uma das três histórias contadas pelo protagonista.
Um ataque armado avassalador contra uma escola de letras - mestres chineses tipografam os seus caracteres em formas únicas, como uma arte ancestral, tudo em tons de vermelho contra negro, uma chuva de flechas alienadoras (do império unificador) caem matando aqui e além alunos de vermelho.
Na mesma sala – entre as flechas que furam o telhado de palha e telha - o mestre traça impassível seus caracteres. Um a um os alunos vão morrendo, enquanto o velho mantém a sua mesma atenção e devoção.
Um dos heróis do filme traça – com arte de pena que parece espada - um carácter em vermelho vivo – que será símbolo do filme… A mensagem que o imperador não compreendera: “tudo baixo um mesmo céu”, escrita em tons de sangue e devoção sem força ou imposição.
A minha mente toca as cenas enquanto comungo dos segredos mostrando o profundo em cada coisa que se faz com amor, tempo e desprendimento. Foi esta a magia das letras hoje.
Cada nova reviravolta do “A”, cada tracinho do “X”, cada traço de personalidade erguendo-se do “N” e do “R”, cada bolachuda calma do “B” e do “D”…
Cada uma que reencontrava o seu lugar antigo mostrava-me quem eu fora ao mesmo tempo que se entrevia o tal processo de “cimentação” de velocidades endiabradas, de desprendimentos bruscos, de aluimento da devoção com que traçava a minha personalidade nas linhas. Vi esse tal processo que eregeu cidades betonadas e avenidas rectilíneas nas minhas folhas brancas – sobrepondo-se ao suave declive das colinas ou ao doce fluir de rios mansos entre as palavras ondulantes…
Gostei de distinguir o tal “progresso” que se havia dado em mim. Gostei de me “revisitar” – de olhar para a criança e ver como ela julgava o adulto que aparentemente se fez baixo as linhas de fundo do caderno da vida.
Acho que ela não gostou da minha letra – e eu, sinceramente – prefiro a sua.
Talvez algum dia – pequeno Daniel – volte a traçar letras, palavras e frases com o mesmo carinho e dedicação, com o mesmo deleite e atenção, com o mesmo sentido despreocupado e generoso sobre o tempo e o espaço a preencher no caderno da vida.
Agora – tenho de escrever depressa – as agulhas dos relógios parecem mandar e os números contam mais que a vida nas letras do dia.
Mas – talvez – volte a escrever com essa mesma parcimónia que apenas uma criança sabe dar ao simples que é viver…
Bem haja pequeno Daniel – por me teres tocado na distância. Bem haja.
domingo, setembro 03, 2006
Pedra
Alguém se entremeia… escreve na areia… palavras que passarão… como o pó…
“Quem não tiver pecado – atire a primeira pedra”…
E assim ficou – até se ficar só…
Dois – sós…
Ela foi – se pecou ou não – nunca saberemos… são palavras no pó (pecar é latino – significa “falhar o centro” - não o livro).
O que me chamou a atenção foi – ele não atirou pedra alguma (ouviste Cefas?).
Ele não atirou pedra alguma…
Solidão
Ser humano – é estar só.
Faz-se barulho para calar a voz do silêncio, o coração que clama pelo regresso a casa.
sábado, setembro 02, 2006
O Coran e as Estrelas
“O Amor que damos é sempre nosso… aquele que mantemos dentro perde-se…”
Esta é uma história que entremeia exclusão, afectos desencontrados, regras e imposições sobre humanidades simples…
É uma história que fala de afectos, de partilhas, de confiança e intimidade…
É um tempo de celulóide que entretece a essência e a forma e questiona a razão pela qual a última se sobrepôs à primeira…
É um momento subtil de análise à intolerância, é um mundo que fala dos medos que se sobrepõe à presença verdadeira do humano – é ver como as fachadas podem danificar o lar que era suposto protegerem e convidarem a se visitar…
Por detrás do Judaísmo e do Islão, entre as aparências, as normas e a essência humana, com a história de uma criança que pretende conhecer o mundo para além do seu balcão, além das paredes da sua casa, sobre as regras de um pai que se destrói a si mesmo e de uma mãe ausente.
É uma exploração do sensual e afectivo nos braços de prostitutas que – com experiência de fachada e emoção no íntimo – guiam Momo (não o de Michael Ende) para o mundo da afirmatividade além das restrições, enquanto um velho vendedor de mercearia – Ibrahim – com um Al-Coran interpretado na forma Sufí, abraça o nosso rapaz ao longo de minutos frente a um ecrã que se transforma em espelho de um qualquer anseio interior de paz e encontro…
“Tell me why, tell me why, tell me why
Hum… why can’t we live together?
Everybody wants to live together – why can’t we live together?
No more wars, no more wars, no more wars – just a little peace in this world…”
Assim reza a música do DVD enquanto escrevo estas linhas depois de ver o filme.
Agora – após falar com uma amiga no Messenger (no “Anjo” para quem gosta destas “traquinices” das coisas) – sobre as Estrelas e o Amor…
Sentindo a frase de cima penso em estrelas e buracos negros. Sei que é algo de Astronomia e Física – mas que não são as ciências dos homens senão esboços do ser do Cosmos?
Estrelas – que quanta maior massa – maior probabilidade de gerar buracos negros. Massa – que é energia… Amor que se dá – nunca se perde, enquanto aquele que se prende nos devora… buracos negros… gravidade humana que descamba sobre si mesma… cancro civilizacional… amor que se limita… opções que se deixam passar… luz que se retém e devora… estrela que morre… escuridão ao se não entregar.
O mistério está em como uns se entregam e outros não, como uns parecem fluir com o Cosmos enquanto outros se trancam nos miasmas mentais… como uns dançam nas fogueiras de Belthane enquanto outros morrem trancados em Palácios de Pedra…
Não tenho respostas… apenas perguntas e algum sentir.
Hoje as flores do Corão levaram às estrelas… sempre ao amor – não há palavra que o não contenha, pois a palavra embeveceu-se na sua substância para ser gerada.
sexta-feira, setembro 01, 2006
The Prince and the Fox
Depois da tempestade… vem a calma.
Depois da força e convulsão da Obra - baixo o serrim, uma vez soprado - encontra-se o belo trabalho que o carpinteiro deixou em nós.
Evoco a beleza que se partilha, os sonhos que se entrevêem no íntimo. Evoco o que de melhor se dão os humanos – na sua limitação tão bela… por alguma razão o Universo nos “tolera”, mesmo quando parecemos tão atrapalhados, sem jeito ou até nocivos.
É porque – como dizia alguém muito sábio com pele de raposa… "apenas com o coração se vê verdadeiramente, o que é essencial é invisível ao olhar"…
Sorrindo para a dádiva que os caminhos da vida colocam no meu deambular, agradeço a partilha do que havia a partilhar.
Aqui fica a leitura do dia, a de uma raposa extremamente “matreira” que ensina um Principezinho - perdido e triste por ter visto cinco mil rosas iguais a aquela que ele pensava única – umas lições lindas.
Agora – para mim – sempre que passo pelos Salgueiros, há um sorriso por ver o verde de um olhar grato lá reflectido. Seja assim com as ondas que cruzam ondas neste lago de vida – que as essências se alimentem e reforcem.
Eu guardo um abraço e um sorriso bem cá dentro - ao soprar o serrim reconheço a obra do mestre Carpinteiro em mim.
Obrigada pela força e carinho que tenho recebido nestes dias – vocês sabem quem são e como o Amor que deixaram passar através dos vossos corações tocou o meu
Bem haja…
P.S - para quem gostou dos livros http://www.apple.com/trailers/independent/conversationswithgod/trailer/
It was then that the fox appeared.
"Good morning," said the fox.
"Good morning," the little prince responded politely, although when he turned around he saw nothing.
"I am right here," the voice said, "under the apple tree."
"Who are you?" asked the little prince, and added, "You are very pretty to look at."
"I am a fox," the fox said.
"Come and play with me," proposed the little prince. "I am so unhappy."
"I cannot play with you," the fox said. "I am not tamed."
"Ah! Please excuse me," said the little prince.
But, after some thought, he added:
"What does that mean--'tame'?"
"You do not live here," said the fox. "What is it that you are looking for?"
"I am looking for men," said the little prince. "What does that mean--'tame'?"
"Men," said the fox. "They have guns, and they hunt. It is very disturbing. They also raise chickens. These are their only interests. Are you looking for chickens?"
"No," said the little prince. "I am looking for friends. What does that mean--'tame'?"
"It is an act too often neglected," said the fox. It means to establish ties."
"'To establish ties'?"
"Just that," said the fox. "To me, you are still nothing more than a little boy who is just like a hundred thousand other little boys. And I have no need of you. And you, on your part, have no need of me. To you, I am nothing more than a fox like a hundred thousand other foxes. But if you tame me, then we shall need each other. To me, you will be unique in all the world. To you, I shall be unique in all the world . . ."
"I am beginning to understand," said the little prince. "There is a flower . . . I think that she has tamed me . . ."
"It is possible," said the fox. "On the Earth one sees all sorts of things."
"Oh, but this is not on the Earth!" said the little prince.
The fox seemed perplexed, and very curious.
"On another planet?"
"Yes."
"Are there hunters on that planet?"
"No."
"Ah, that is interesting! Are there chickens?"
"No."
"Nothing is perfect," sighed the fox.
But he came back to his idea.
"My life is very monotonous," the fox said. "I hunt chickens; men hunt me. All the chickens are just alike, and all the men are just alike. And, in consequence, I am a little bored. But if you tame me, it will be as if the sun came to shine on my life. I shall know the sound of a step that will be different from all the others. Other steps send me hurrying back underneath the ground. Yours will call me, like music, out of my burrow. And then look: you see the grain-fields down yonder? I do not eat bread. Wheat is of no use to me. The wheat fields have nothing to say to me. And that is sad. But you have hair that is the color of gold. Think how wonderful that will be when you have tamed me! The grain, which is also golden, will bring me back the thought of you. And I shall love to listen to the wind in the wheat . . ."
The fox gazed at the little prince, for a long time.
"Please--tame me!" he said.
"I want to, very much," the little prince replied. "But I have not much time. I have friends to discover, and a great many things to understand."
"One only understands the things that one tames," said the fox. "Men have no more time to understand anything. They buy things all ready made at the shops. But there is no shop anywhere where one can buy friendship, and so men have no friends any more. If you want a friend, tame me . . ."
"What must I do, to tame you?" asked the little prince.
"You must be very patient," replied the fox. "First you will sit down at a little distance from me--like that--in the grass. I shall look at you out of the corner of my eye, and you will say nothing. Words are the source of misunderstandings. But you will sit a little closer to me, every day . . ."
The next day the little prince came back.
"It would have been better to come back at the same hour," said the fox. "If, for example, you come at four o'clock in the afternoon, then at three o'clock I shall begin to be happy. I shall feel happier and happier as the hour advances. At four o'clock, I shall already be worrying and jumping about. I shall show you how happy I am! But if you come at just any time, I shall never know at what hour my heart is to be ready to greet you . . . One must observe the proper rites . . ."
"What is a rite?" asked the little prince.
"Those also are actions too often neglected," said the fox. "They are what make one day different from other days, one hour from other hours. There is a rite, for example, among my hunters. Every Thursday they dance with the village girls. So Thursday is a wonderful day for me! I can take a walk as far as the vineyards. But if the hunters danced at just any time, every day would be like every other day, and I should never have any vacation at all."
So the little prince tamed the fox. And when the hour of his departure drew near--
"Ah," said the fox, "I shall cry."
"It is your own fault," said the little prince. "I never wished you any sort of harm; but you wanted me to tame you . . ."
"Yes, that is so," said the fox.
"But now you are going to cry!" said the little prince.
"Yes, that is so," said the fox.
"Then it has done you no good at all!"
"It has done me good," said the fox, "because of the color of the wheat fields." And then he added:
"Go and look again at the roses. You will understand now that yours is unique in all the world. Then come back to say goodbye to me, and I will make you a present of a secret."
The little prince went away, to look again at the roses.
"You are not at all like my rose," he said. "As yet you are nothing. No one has tamed you, and you have tamed no one. You are like my fox when I first knew him. He was only a fox like a hundred thousand other foxes. But I have made him my friend, and now he is unique in all the world."
And the roses were very much embarassed.
"You are beautiful, but you are empty," he went on. "One could not die for you. To be sure, an ordinary passerby would think that my rose looked just like you--the rose that belongs to me. But in herself alone she is more important than all the hundreds of you other roses: because it is she that I have watered; because it is she that I have put under the glass globe; because it is she that I have sheltered behind the screen; because it is for her that I have killed the caterpillars (except the two or three that we saved to become butterflies); because it is she that I have listened to, when she grumbled, or boasted, or ever sometimes when she said nothing. Because she is my rose.
And he went back to meet the fox.
"Goodbye," he said.
"Goodbye," said the fox. "And now here is my secret, a very simple secret: It is only with the heart that one can see rightly; what is essential is invisible to the eye."
"What is essential is invisible to the eye," the little prince repeated, so that he would be sure to remember.
"It is the time you have wasted for your rose that makes your rose so important."
"It is the time I have wasted for my rose--" said the little prince, so that he would be sure to remember.
"Men have forgotten this truth," said the fox. "But you must not forget it. You become responsible, forever, for what you have tamed. You are responsible for your rose . . ."
"I am responsible for my rose," the little prince repeated, so that he would be sure to remember.
quinta-feira, agosto 31, 2006
Do Prazer
"Então um eremita que visitava a cidade uma vez por ano, avançou e
disse, Fala-nos do Prazer.
E ele respondeu, dizendo:
O prazer é uma canção de liberdade, mas não é a liberdade.
É o desabrochar dos vossos desejos, mas não é os seus frutos.
É um chamamento profundo para as alturas, mas não é profundo nem alto.
É o encarcerado a ganhar asas, mas não é o espaço que o circunda.
Sim, na verdade, o prazer é uma canção de liberdade.
E bem gostaria que a cantásseis com todo o vosso coração;
No entanto, não percais os vossos corações nos cânticos.
Alguma da vossa juventude procura o prazer como se isso fosse tudo, e esses
são julgados e punidos.
Eu não os julgaria nem puniria.
Gostaria que empreendessem a busca.
Pois eles encontrarão prazer, mas não só.
Sete são as suas irmãs, e a mais insignificante delas é mais bela que o prazer.
Nunca ouviram a história do homem que cavava a terra para encontrar raízes
e descobriu um tesouro?
E alguns de vós, mais velhos, recordam os prazeres com remorsos.
Como erros cometidos quando estavam bêbedos.
Mas o remorso só obscurece o espírito e não o castiga.
Deveriam lembrar-se dos prazeres com gratidão, tal como fariam após uma
colheita no verão.
No entanto, se os conforta sentir o remorso, deixai-os confortarem-se.
E há entre vós aqueles que não são nem suficientemente jovens para
empreender a busca, nem suficientemente velhos para se lembrarem;
E no medo deles de procurarem e se lembrarem, conseguem afastar todos os
prazeres, a menos que negligenciem o espírito.
Mas até na antecipação reside o seu prazer.
E assim também eles encontram um tesouro, embora procurem as raízes com
mãos trémulas.
Mas dizei-me, quem pode ofender o espírito?
Será que o rouxinol consegue ofender a quietude da noite ou o brilho das
estrelas?
E as vossas chamas ou fumo conseguem carregar o vento?
Pensais que o espírito é um lago imóvel que podeis perturbar?
Muitas vezes ao negardes a vós mesmos o prazer, estais a ocultar o desejo
nos recônditos do vosso ser.
Quem sabe que o que parece ser omitido hoje espera por amanhã?
Até o vosso corpo conhece a sua herança e as suas necessidades e não sairá
desiludido.
E o vosso corpo é a harpa da vossa alma, e é a vós que compete extrair dela
uma doce melodia ou sons confusos.
E no vosso coração, perguntais,
"Como distinguiremos o que é bom no prazer do que não é?"
Ide para os vossos campos e jardins e aprendereis que o prazer da abelha
consiste em retirar o mel da flor.
Mas também a flor tem prazer em dar o seu mel à abelha.
Pois para a abelha a flor é uma fonte de vida.
E para a flor a abelha é mensageira de amor.
E, para ambas, abelha e flor, o dar e o receber de prazer é uma necessidade e
um êxtase.
Povo de Orfalés, olhai para os vossos prazeres como as abelhas e as flores."
É a leitura do dia...
Lost
E fico – assim – sem ser nem querer…
Sou uma página em branco – à espera de se preencher
Fico um risco nas marés
E – não, não vou mexer os pés
Vou ficar – à espera – desse tal deus criador
Cria – dor
Que me diga – no meio de flor de lótus
E rebentos de betão
Que faço neste mundo – que pinto nesta confusão
Estou perdido… rumo sem me ver
Estou só – por vogar sem conhecer
Que local submisso, que caverna de degredo
Que sítio mais confuso onde ser é parecê-lo
Assim não dá… assim custa e não dá
Estou farto, só no escuro… e não há mais estrelas neste céu
Não sei para onde vou – não sei por onde vou – e tampouco sei ir por ai
domingo, agosto 27, 2006
Apegos
Apegos… tantos.
Há tanto tempo que me sinto para além da máscara… a máscara tomou conta de mim, não sai e me drena – lenta e inexoravelmente – usurpando toda a vida e força desta alma até não sobrar nada mais do que pedra e pó…
Há dias… nos que os que assistimos nos assistem com intensidade tal que quebram a vitrine reforçada contra balas, atrás da qual nos escondemos para ver a vida passar sem que esta nos fira, nos toque… nos liberte.
A Sexta foi um desses dias.
Há já algum tempo que deixei de estrebuchar relativamente aos cuidados de saúde, à anedota que os valores de Enfermagem se tornaram, ao mercantilismo das instituições actuais – tudo isto é um processo disfarçado de incapacidade que visa o fundir este ilhéu de gentes paradas no grande continente de feira de “tudo a 300” no que nos enfiaram… agora é só deixar-se ir e fazer o melhor para conservar alguma humanidade.
Digo que deixei de lutar por ver a mentira da minha própria luta – eu nunca escolhi ser Enfermeiro – vim por deixar-me ir.
Todos os argumentos que possa usar caem pela falta de uma vocação ou um amor verdadeiro à causa… apenas a humanidade me fere – e essa está até nos que recolhem o lixo nas ruas, por isso – nada de nobrezas nas profissões, de profissões nobres – é a forma como vivemos a nossa vida que marca a diferença…
Mas – voltando ao tema.
Há já uns dias longos para cá que estrebucho entre faíscas de humanidade, presença e longos ermos de vazio, medo e dor.
Nos últimos mal consigo erguer o olhar para quem pelo gabinete passa, e todo o esforço para fazer algo se transforma numa sessão de tortura chinesa (com unhas arrancadas após pauzinhos de bambu queimando)… suponho que estou em depressão crónica à uns 30 anos com alguns períodos de remissão esporádica devidos a um adensamento da ilusão de ser, estar… e afins.
Há uma área que – às segundas, quartas e sextas – me dá um especial gozo e dor. Explico: tenho de fazer uns domicílios (nome genérico para as nossas actividades nas casas de utentes que requisitam este serviço).
São – regra geral - pessoas idosas, acamadas, com queixas várias e algumas escaras (feridas de pressão) para tratar.
Eu adoro sair – porque posso respirar algo de ar “puro”, olhar os montes por segundos e, de certa forma, sentir algo de “liberdade”.
Tenho de caminhar até às casas das pessoas, e isso é fantástico.
Ora, a outra parte é lidar com a dor… estou numa fase em que me dói uma injecção, uma vacina num bebé é uma tortura, um penso que não termina de curar é um calvário (sobretudo pelo desespero de não ter material para colocar lá… bem haja os economistas que nos prendem as mãos)… estou como um vidrinho… tudo me parte…
Ora – no meio disto – está a dona Rosalina.
Ela mora com o filho, não fala, tem umas escaras e – sobretudo… sorri!
Sorri tanto… e entende as coisas.. não as palavras meias… mas as que vêem de dentro. Olha para o filho (que mora na mesma casa agora e que toma conta dela) com um olhar de “saudade” misturada cm uma doce contemplação, um amor cândido e uma espera por algo mais que palavras de “crosta” que dêem coração e intensidade mais do que os circunstanciais “velhota” ou gestos meios de carinho que não se finalizam pelo medo, pelas aparências… sei lá mais porquê – merdices sociais imagino.
Os sorrisos daquela mulher – nas manhãs (que é o que mais custa) de dias sobrecarregados (falta de pessoal, falta de materiais, falta de organização, falta de paciência e excesso de doentes por época balnear) são bálsamo.
Aprendi a beija-la sempre que lá vou, a me sentar um pouco – com a minha alma de rasto sem ocultar que estou feito um farrapo – e, desde o sofá, trocar algumas palavras com ela… mesmo que ela não responda.
Às vezes canto – porque já não há mais nada a fazer a não ser pedir para desligar o raio do rádio nas notícias (fui eu quem pediu para o pôr lá para que ela tivesse algo de presenças: à falta de humanidades sempre se podem colocar lá umas vozes de caixa – como fazemos nós os “iluminados” da vida diária, com as televisões nos quartos). Suponho que o filho me acha piada…
Pelo menos, sempre que me vou, agarro-lhe a mão.
Ela não larga nada – está como um bebé (suponho que prestes a entrar no tal “reino”, se as palavras do mestre estiverem correctas) – e eu lá tenho de fazer umas palhaçadas para poder sair… o que é bom, porque já se pode deixar lá a mão do filho em vez da minha e assim ficam na conversa forçada durante um minuto, com a desculpa do enfermeiro esquesito, ela tem as mãos dele nas dela e ele não precisa fugir, porque a culpa sempre é minha…
Não sei quem dá mais – acho que ela.
Entre os peidinhos e trolhitos bem dados (que esticam até ao extremo a pouca paciência que se traz nos primeiros momentos da manha e acendem a “Hum(us)ildade” nos outros) e os sorrisos, e o silêncio que sabe e sente… fica-se entre duas terras, mas há uma sensação de ter sido esticado que é verdadeira e – de certa forma – boa.
Dói… dói a dor que sei que ela sente, dói a degenerescência do corpo… mas o que dói mais é a solidão.
A solidão de se ter filhos tão perto e se estar tão longe que nenhum toque ou palavra verdadeira surge nos anos que nos são dados para treinar isso mesmo – o abrir o coração.
O mostrar a nossa fragilidade e sentir que é amada e plenamente abraçada… até que a vida tem de vir - como um carro de lixo que recolhe as tristezas do chão para reciclagem – e nos manda para uma cama. Ai, toda a orgulhosa fachada, todo o frontispício ao qual se dedicou tanto do nosso tempo e energia – estão feitos em escaras, genitais macerados, corpos de carnes descaídas, necessidade que nos lavem as fezes e nos limpem a baba… eles existem para que nos rebaixemos ao ponto de não mais precisar de manter aparências.
Por muito que os escondamos – eles vão estar lá… o “tu” e o “eu” que serão. O quanto nos mentimos na gestão do tempo e daquilo que é verdadeiramente importante. Esta sociedade de sucedâneos e aparências, de anúncios de televisão e passatempos (como se o tempo não fosse uma medida de qualidade, mais do que um algo para se “passar” ou “matar”), de guerras e problemas e causas tão longe que até se fica com a ideia de que os mapas devem estar esquesitos – pois não sabemos sequer onde foi o tal terremoto, o tal acidente, o tal desastre de avião, o tal massacre… tudo isto é lavado.
Eles estão ali – uma estátua à nossa própria pequenez e inconsciência – para que notemos o quanto é difícil dar o essencial – amor, abertura, tempo – o quanto estabelecemos o culto das aparências – da fortaleza, da actividade, da auto-suficiência – quando somos esse ser que necessita que o agarrem da mão e o guiem em amor, carinho e compreensão – nas duas etapas da sua vida nas quais não se prende às ilusões…
Depois veio um domicílio novo, em pleno dia de caos… e eu já a ver o desastre total. Entre o meu atraso, os doentes infinitos, as faltas de material, a energia drenada…
Lá fui. Bati à porta e entrei nesta casa linda – bem arranjada, com cheiro a fresco e plena de presenças!
É algo que mata – são as casas cheias de pó de passado, de fotografias a preto e branco, de cheiros a mofo ou abafados, de limpeza “sui generis” garantida pelas assistentes pagas para o efeito.
Casas sem vida, altares à morte com culto de sombras e erradicação de esperança. Não há crianças nestas casas, não há luz, não há gentes que sintam lar ali… e são tantas… muitas das realidades dos “domicílios” actuais… doença que alastra cada vez mais.
Pois aqui havia crianças, havia três gerações de seres humanos no mesmo espaço.
Quem estava a camada era a “visa” – não o cartão de crédito (quem dera que esse fosse acamado e arrumado de vez), mas a bisavó.
Tinha sido internada por uma das irmãs da família, mas foi levada para casa por uma outra e agora estava a ser cuidada – realmente cuidada.
E – relembro, por muito que custe ouvir – cuidar, para ser holístico (isto é para as escolas de Enfermagem, que adoram a porra da palavra), tem de ser humano, emocional, afectivo e familiar também.
Estavam duas filhas, estavam três crianças, estava uma neta grávida.
As filhas como borboletas à volta da luz – preocupadas com qualquer detalhe, ávidas de querer saber mais, de comprar o que quer que fosse que trouxesse alívio ao ser amado.
As crianças a brincar com um puzzle, uma outra – de três anos – fez um belo chichi ali mesmo – no corredor.
Eu que tratava de uma escara, almoço a cozinhar, risos entre a dor… família.
Eu que queria chorar… mas tive de manter a compostura.
Chorar porque era assim que as coisas deveriam ser, porque – quem não quereria sentir aquilo?
Ninguém nos atirou para um canto da casa – num quarto qualquer longe das vistas de todos… Não! Aquela mulher estava na sala – em pleno centro da casa, e as crianças brincavam enquanto eu trabalhava. E – sabem que mais – nem se importavam, tão normal aquilo parecia que nem vieram olhar enquanto retirava pele morta de tecido desvitalizado. E ninguém as retirou – como fazem muitos – para que não vissem ou não estivessem lá. E ninguém se retirou. Toda aquela força, todo aquele sentimento estavam lá com aquela mulher… abençoada seja ela pelo amor.
Eu vim embora – sem palavras. Com algo trancado na garganta, com essa tal vontade de chorar que não sai – mas quem me dera que saísse.
Pela felicidade de ter encontrado aquele amor – aquela incondicionalidade, aquele dar tudo sem perguntar o custo - por um ser humano.
Tão anti civilizacional, tão destrutor de fachadas de tempos modernos, tão anti “auto suficiência” de “self-service” e hipermercado, tão anti culto de Homem endeusado – tão simples e tão ousado – como se precisar uns dos outros, de se estabelecer pontes de amor e incondicionalidade, tão simples como que – ao fim e ao cabo – os tais valores ainda existem.
E não estão em cursos nem em livros, picoterapeutas, médicos, enfermeiros, clínicas, lares de 5* ou merdices afins – estão naquilo que não pode ser pago ou comprado, estão nas vidas das pessoas e na sua capacidade de se entregar… pena que eu seja apenas um observador… pena.
quinta-feira, agosto 24, 2006
Words as a Sword
Palavras… dizes… palavras já há demais… palavras tenho por ti e por mim…
Tristeza… é uma palavra… que te diz?
Solidão – é uma palavra… de que fala?
Que são as palavras senão ecos de uma voz mais profunda que a mente não iguala?
Como vês – só perguntas…
Certezas nenhumas, como se navegasse – num barco sem leme nem velas, nem carta de marear… ao som das marés, à espera, da mensagem deste amplo mar…
E fico-me – nos socalcos das maresias, recantos com paredes de coral
Até que a maré venha e me reviva, e me leve para não mais voltar
E de novo vogo – sem leme, sem vela e sem rumo… de novo me deixo levar
Pelas ondas – não sou eu onda da vida? – até onde elas me queiram deixar
Só palavras… insulto nefasto.
Pois sim – se nem as palavras valem, que resta?
Imagina – se lhe contasses ao artesão – que suas mãos, não…
Que lhe dissesses ao pássaro que – asas não eram
Que lhe atirasses à cara – à Primavera – que suas flores são pouco, são nada, não chegam…
Tu queres verão e frutos… espera então e contempla
Baixo as sombras das árvores
E espera, e espera e desespera…
Sem flores – espera…
Que frutos comes – pergunto eu?
Quê de tão grande te serve, para desprezares as minhas flores humildes?
Nunca engalanei as minhas paredes com troféus de guerras ganhas… muito pelo contrário – os meus dias contam-se em batalhas perdidas…
Palavras não têm poder, têm o dom que - quem quer que as ler - lhes puder entregar
O meu poder é este – o de não poder nada… mas com orgulho.
Os meus feitos são linhas numa areia que muda, num mar com meu nome escrito
E assim me sinto humilde, pois palavras são sons que passam e que apenas revivem
Nos lábios que os descobrem, que neles reparam e com eles respiram
Não queria lavrar muito mais, muita mais vida por aqui deixar – que já chega a confusão deste sítio – cheio daqueles com ganas de mandar
E assim me esvaio de mansinho – meu sangue esfria, ficam só as ditas palavras
Nelas todo o calor doentio, nelas todo o fulgor que se espalha
Enquanto eu me esvaio como um rio, que numa planície desagua
Sem mar, sem destino – veias num chão a sangrar… mais nada, nada mais…
Sê feliz com mais que palavras – mas lembra o quanto são as palavras que te arrebatam da tua pasmaceira diária
Lembra quanto as palavras te inflamaram em sonhos de vidas a percorrer
Sente o quanto as palavras acendem a tua volúpia e o desejo por tudo o que tens dentro que nunca será tocado por mãos, pele ou feito
E – quando insultares a palavra com tua própria
Sente o quanto cospes no espelho, e depois lamenta… lamenta
Um abraço – e, Adeus
A um que só tu – e eu – veremos chegar
As Coisas Simples
Como se esquece – nas esquinas do medo – o quanto as voltas e laços da vida são femininas… generosas, ternas, embevecidas… simples…
Nos claustros da mente reina um velho triste, cinzento e só…
Rei dos seus nadas, espalha a dor do seu reino, expande o Inverno do seu coração encerrado.
Nos labirintos de retóricas vãs se diverte e encanta – e assim deixa minguar os seus dias – por detrás das grades que o protegem é prisioneiro do seu próprio drama…
E – lá fora – vão e vêm fadas sem nome.
Criaturas de pés descalços em clareiras de luar, jovens de risos claros ecoando como águas de regato – cristalinas – entre as vertentes de montanhas altas como tronos.
Livres dançam nos postes de Maio, flores novas nos cabelos soltos, olhares de luz encantados pelos rostos também jovens de jovens que se cortejam – vermelhas maçãs nos rostos da vida que se sente e se vive… não se imagina nem se define.
E o velho olha desde a sua janela – gotas das chuvas de outroras já idos, pendentes num eterno aceno – sem nunca se estatelar no chão. Gelo no seu vitral, gelo…
E o tom ríspido dos seus modos apenas encontra os risos sinceros do outro lado dos seus muros pétreos, dos seus corredores obscuros e apertados, do peso opulento de mofo e pó das suas maneiras, as suas rotinas, os seus modos sempre mesmos.
E fica-se – olhando… como se houvera uma vontade sem forma – lá muito dentro. Uma luzinha remota perdida nos tempos – que ele mastiga como um pedaço de bife mastigado pelos anos, sem nunca o ter engolido ou cuspido… e mastiga e mastiga, sem lhe dar destino… e ali fica…
Até que o desdém – vem – e o arrebata.
E as portas de Inverno se abrem de par em par – sopradas por uma fúria de dor contida; e os ginetes de sombra se esvaem entre as ladeiras, procurando aqueles que sorriem com vozes claras cantando, com braços abertos se abraçando – ignorantes da vastidão de sombras que sobre eles se abate, inocentes do juízo que sobre eles ditou a condena perpétua – oblívio pelos tempos e as histórias dos copistas, ódio pelos misóginos e esdrúxulos amantes de deuses encadeados, horror pelas fogueiras de Belthane transformadas em inquisição – de purificadoras de espíritos e unificadores da paixão, se fizeram sentenças de celeumas contra a própria força da criação.
E os costumes simples se fizeram direito romano e canónico. E as vestes folgadas e os seios descobertos foram vestidos em soutanas, hábitos e aspaventos…
E perdemos… perdemos… tudo, menos este momento. No que evocamos de novo o passado longínquo no qual fomos livres – e livres seremos.
Não tarda que Roma caia. Não tarda…
quarta-feira, agosto 23, 2006
Os ermos distantes
Entre linhas rectas e becos ocos de existência mundana,
É artista aquele que dá a sua cor ao momento, às gentes, ao encontro…
É artista sublime o que dobra a esquina da rotina e se encontra com um monumento à ousadia…
É vivo o que se desliga, e vive - como quem andasse despido
É brilhante o que se enamora - da sede, da sequia, do estio
É sincero o que sente - essa tela velha e vazia do antigamente
Tudo tons e coragens – entre vida diária espartana
Gritando sem pausa a viragem
De uma época diáfana
Para um mundo novo – com virtude, inteireza e mensagem:
Libertos das cadeias – livres dos grilhões
De escravos presos no seu mundo interno
Unidos e vivos – mente e razão
Nunca mais sós…
Nunca mais pedindo aos deuses sua esmola
Sempre vivos – nunca ausentes
Em cada passo desta escola
E – para além dos sonhos e anseios
Encontrar casa, sentir voragem
Na imensidão de um momento
E viver…
Mais do que ser parte de algo –
Ser algo em toda a parte
Sucedâneos
De certo que reconheces isto...
"Recordo um alguém que passeava só e viu uma mulher à beira de um poço.
Ele pediu àgua e ela perguntou se estava tudo bem com ele - pois era suposto homens não intimarem com mulheres assim - daquela maneira liberta e serena... muito menos sendo ela Samaritana e ele Judeu (Galileu para todos os efeitos).
E ele falou-lhe dos cinco homens que ela tinha e da água que ele trazia para oferecer.
Uma água que calmaria de tal forma toda a sede, que nunca mais teria necessidade de beber e beber e beber...
Talvez seja essa a fonte que se procura – “underground ou at the surfice”...
Talvez..."
Agora o poema sobre o tema:
Chocolates refinados, em caixas estilizadas, anuncio fervoroso prometendo paixão…
Brisa fresca, seara sempre viva, sombra baixo árvore de fruto em pleno Verão…
Embalagens de seda, cetim e veludo - prendas que prendem em cadeias de desejo os amantes de ocasião…
Olhares simples de sorriso tímido e nobreza de lírio embalado em majestade, sentir irmão da razão…
Peles duras de sentires rijos e pulsações derretidas no caramelo sedutor… a mosca apanhada, pela fina flor engolida, sua vida sugada, sobrando a armação…
Um gesto – por um gesto – estilhaçam fronteiras,
derretem-se angústias, se desfazem barreiras,
o gelo cede ao rebentar vida nova,
olhares se encontram entre luz cristalina,
peitos se mesclam no abraço da aurora –
o amor liberta – o desejo não…
Olhares gastos, ensaio das falas, o ditador e tirano subjugando o coração…
Gestos simples de faces coradas ao se gaguejar sem palavras… ondas que extravasam o mar… e voar… nudez viva de sentir profundo, vertigem sentida na devoção…
Ecos da inocência perdida nas feridas que sangram passados ingratos, culto do sangue e da dor… punição…
Vivência sentida na entrega em asas do sonho, dançar com pés de fada entre anjos cantando no fundo dos olhos, anunciando libertação…
Por uma lágrima – da inocência perdida à remissão…
Por uma mágoa – da vivência sentida à perdição…
domingo, agosto 20, 2006
Exile
Roaming towards home - broken feet, shattered heart… still, we walk.
When all around seemed as echoes – distant – from that past within,
We roamed and still endured… and fighting, from lamb to lion we came to be.
Should pointing arrows hide themselves - under vanity and despair…
Then we stretch further, thin and humble, we wondered free…
Keeping burning fire alive inside, lighting candles in our eyes,
As lit stars in heavens, is hope enduring in our hearts…
When we wonder, we stray …
Tired soul dragging,
Tired eyes looking to see,
A star of light, the golden city
Amongst shades, light on me…
When we wandered, we passed away…
As the old man – sick and tired – we walked in shades,
And with shades we struggled… now we believe…
Beyond death and torment, beyond howling screams,
There’s a voice - a silent whisper – saying you don’t belong here…
Lost as we walked - may light guide tired body and broken will,
When nothing else seems there to hold us, and everything seems pale and still;
One day we stop – bloodless and cold.
Stony eyes and wasted breath as we stare…
All the rainbows of creation, all the winds of the past
Become an echo of this moment - on it a future that will last
And all shadows that once tortured, all torments we have passed
Turn to nothing in that moment, when everything is in the heart
We were slaves
Now we are free!
sábado, agosto 19, 2006
Pegadas na Areia
Apenas as perguntas
E peugadas na areia
Com rasto de linha ondulante
Que são apagadas pelas marés
sexta-feira, agosto 18, 2006
ave W eva
as the wave I belong to the sea;
I have no will of my own to be given
Giving myself I roam free…
quinta-feira, agosto 17, 2006
Water fall light
Tens vida…
Gostaria que as vidas jorrassem livres
Como águas de montanhas vivas
E que, juntas e livres cantassem
A verdade pura que o seu mar convida…
Assim a vida – como tua voz disse –
Seria verdadeiramente colorida
Nós desatados
“Um poeta é o ser menos poético que existe, porque não possui nenhuma identidade. Encontra-se constantemente na eminência de se tornar ou ser uma outra personalidade. O sol, a lua, o mar, os homens e as mulheres, todos estes seres submetidos aos seus próprios impulsos, são poéticos e mantêm um atributo qualquer imutável; o poeta não tem nenhum, permanece sem identidade.”
Keats
Quem fará o seu próprio prato? Quem deixará as sobras do que já não pretende? Quantos comem o que está tal como é? Quantos reinventam realidade para que seja ela a ceder a sua dimensão ausente… em vez de serem eles a enfiar seus sonhos num pedaço de forno sem lume que mantém a massa tal como era – à espera – de um algo que nunca se encena, de uma peça sem drama, de um actor sem arte, de uma máscara sem olhar?
Que o cisne caia, que uma mole de asas cortadas e penas e sangue nos abafe quando éramos antes a ave que voava…
Um cisne sem mar próprio com limites nossos – o tal lago onde se passeia com majestosa altivez…
Formas…
Veladas… nadas…
“Sweet dreams are made of Tears… who am I to disagree
I’ve travelled the world and the seven seas – everybody is looking for something
Some of them want to use you… some of them want to get used by you
Some of them want to abuse you, some of them want to be abused”
Oiço estas linhas na mente… e vagueio…
Os que temem prendem, a mente define…
As estações não existem – o homem inventa-as na sua vã glória de mandar, na sua inconsciência… pois não há tal coisa – apenas o olhar da terra sobre si mesma, ao se mutar…
Como obedece a razão ao fragmento? Como se deixa o eterno matar
Num tal cisma, numa tal forma, num tal esquecer - num tal desejar?
Quem sou?
Os que não temem amam… amam tudo – amam todos, por todos se deixam amar…
Quem sou?
Quem queres que eu seja?
Queres que te satisfaça?
O poeta é solitário – todos vêem a vidraça – nunca ninguém entra no salão…
Todos reparam na casa, todos invejam as cores garridas, todos passam… a vida não…
Ser Apolo, ser um raio fugaz…
Mas – para além da parede caiada – haverá alguém que, para além da entrada – se arrisque a mergulhar mais fundo que o salão?
Querem espelhos, querem miragens
Querem poetas de altas paragens…
Querem almas nobres para se ver e rever – querem Narcisos em flores de água
Querem… mas a minha vida não…
E temem – oh tanto! – ficar nus, sem nada
Que de vento – uma rajada – lhes leve o sombreiro de penas e então…
Ficar nus, despidos: sem forças,
Ao se ver - olhos nos olhos - na força da vida,
E se notarem presos do medo, presos - mão em mão…
Para além da miragem… queres ver… consegues ver?
Mentiras são as que mantêm esse mundo a rodar
Mentiras são as que tornam possível andar
Mentiras a meias, mentiras plenas, mentiras veladas, mentiras de ocasião…
Mulheres que amam homens do altar para fora – que alimentam desejos e paixão…
Homens que se convencem de ser mais do que pensam, de ter sentido no trabalho dos dias, de ser grandes por que alguém lhes dá razão…
Passam – todos passam…
Em dois ou três tempos a verdade te apanha – pó és… ao pó voltarás…
Talvez – talvez haja mais…
Mas - o poeta vem e liberta – das cisões, das obrigações, das imposições… das razões…
“Polvo seremos… pero polvo enamorado” – rezava uma frase, graffiti num muro branco e triste, verdade escondida num recanto – mas verdade “nontheless”…
O poeta ama hoje, desespera amanhã…
O poeta não deseja o seguro do lar;
O poeta salta abismos inexplorados
O poeta ousa vender a alma ao diabo – para vos mostrar como sente o pobre coitado
O poeta dói, o poeta morre e renasce para que vocês saibam a miragem
De se sentirem aqui e agora – mais nada,
Para além do que possam pensar…
O poeta morre e renasce – para que - além do povo que parte
Se recorde o eco do coração
O poeta chora e treme:
Palhaço bizarro que geme,
Para logo subir e cantar
Entre as alturas de pasto, rebanhos de flocos algodoados
Onde apenas a brisa sopra sem pressa
Onde o mundo passa sem relógio
Onde tudo é nada e nada importa
Onde tudo é tudo - sem mais causa ou razão
E – para além das esferas cinzentas
Dos medos ocos, dos ecos sombrios
Passa o tempo a fazer que dorme
Passa o sono a sonhar devagar
Para despertar como semente no estio
Como brasa que soprada se inflama
Como ave renascida de entre o pó e a lama
Onde se vendem asas por vestes douradas
Onde pintamos a cara para não berrar
Com a beleza sagrada que se assoma e se esmaga
Do pequeno ser vivo que pensa e não dá…