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terça-feira, junho 23, 2009

Lázaro

O homem tinha ressuscitado. Literalmente havia regressado do mundo daqueles que já não recordam o seu nome, e dos quais já quase ninguém se recorda.
Suas carnes haviam sido atacadas pelo vento da degenerescência, seus membros haviam começado a mirrar. Os familiares disputaram suas posses - como se de legionários romanos ao pé da cruz se tratasse... no meio do jogo de dados que empurrava o despojo de homem para cá e além, uma mulher havia-se mantido ao pé dele, e ele voltara...

Primeiro foram as úlceras de pressão que começaram a sarar. Quase que estivera no limiar de amputar a perna, ambos os calcâneos completamente desgastados por uma guerra que durara meses. Lentamente começou a recuperar. A mulher não arredara pé. Dormia todos os dias no sofá ao lado da cama articulada que ele ocupava. Sempre alerta, como uma loba guardando suas crias...
Os familiares que lhe pagavam num início, talvez não contassem com a sua perseverança nem com a espectacular recuperação do senhor José. O facto é que, mesmo sem cobrar durante meses, ela se mantivera com ele; mesmo já quando nem falava, estando para além das esperanças, ele regressara um dia, começara a falar connosco e até já gracejava e sorria.

Estes milagres são raros nos cuidados a dependentes crónicos já com 92 anos, como o senhor José. São uma pérola entre os porcos e pouco ou nada se pode fazer senão sorrir e admirar-se por estas jogadas do destino.

O dia começava e eu levava uma colega do curso de especialidade e que tinha seleccionado o senhor José como alvo de reabilitação. No espaço de três ou quatro sessões víamos como ele se penteava, se olhava já vaidoso no espelho – olhos azuis iluminados por uma graça que devia ter em abundância quando era mais novo.
Este dia, no entanto, era de despedida; a colega vinha dizer adeus - seu estágio terminava e ela despedia-se do milagre que tínhamos contemplado nas últimas semanas.

“Hoje fomos de cadeira de rodas passear pela rua aqui ao lado” diz a dona Natercia, feliz pela cara iluminada que o Sr. José esboça.
“É verdade Sr. José? Hoje saiu e passeou lá por fora?”, ele sorri com olhar matreiro, como se comentasse em silêncio o quanto de vida ainda lhe vai na alma e o quanto ainda tem para revelar...
“Muito bem!” dizemos nós - com o nosso tom maternal de costume: como se os utentes fossem os nossos filhos adoptivos e nós estivéssemos a celebrar os seus feitos, assim como os de crianças nos seus primeiros passos...

“Fui, fui...” Seu olhar parece vago, como que revivendo os momentos que pouco tempo antes estivera a saborear... e é que a memória destas gentes fica tão imediata ou tão ligada ao passado que todo o tempo de periferia, a distância de um dia ou de um mês, parece completamente apagado do seu registo... a mente humana tem destes milagres ou mistérios...

Mas havia alguma tristeza por onde deveria haver júbilo.
“Que foi Sr. José, não gostou do passeio?”
“Não é isso, é que vi os meus campos...”
“E não gostou de ver a sua terra?”
“Gostei... mas toda a vida a trabalhar para agora a ver assim... ao baldio”.

Ficamos em silêncio...acompanhávamos o seu olhar mergulhando na sua nostalgia. Compreendemos o que queria dizer, o quanto o tempo passado e as tradições, o esforço daqueles que nos precederam, haviam ficado ao abandono. O quanto deixamos atrás um certo Portugal que os nossos avôs criaram e moldaram a pulso; o quanto passamos pelos baldios e já nem sequer percebemos a perda que isto implica para uma terra habituada ao trabalho do homem. Nós, que nos movemos por estradas informáticas e imagens digitais, esquecemos completamente o legado dos nossos ancestrais. Como o Sr. José, ficamos sem memória mediata, apenas ligando ao imediatismo e às histórias que vêm de um passado remoto – como as lendas e as histórias para crianças...

Sr. José, a sua história ficará nestas linhas virtuais, ainda que o seu trabalho fique soterrado pela sucessão das eras, pelo natural devir das gerações, pelas primaveras novas que vêm cobrir as memórias do verão de vidas passadas... ficarão apenas as lendas para as gerações vindouras, pois já nem sequer terão idosos para contar histórias à luz da lareira. Ou isso, ou todos os idosos abandonados aqui e além, despertem talvez um dia e, como o Sr José, nos deixem meditabundos acerca das causas e curvas da vida...

2 comentários:

cgm disse...

temos de viver para o presente.
essas terras fizeram a sua parte na altura devida.
nao ha que chorar, tudo tem um principio meio e um fim.
nao ha que sentir pena ou ficar triste.
as coisas tiverem a sua contribuiçao na altura que tinham de acontecer.
quando acabam há que partir para outra coisa.

Micas disse...

Li-[te] nas entre-linhas...O mundo era tão mais bonito e menos complicado se todos tivessem a mesma sensibilidade que tu. Bondade, falta Bondade à maioria das gentes...
Um abraço {ainda} desde a germania mas quase com um "pé" na lusitãnia ;)