Redondas, estilizadas, com esmero, rodopiando as curvas, grandes, abertas, com tempo e deleite na sua elaboração, ecos de passado com lufadas de ar já respirado enquanto as tecia e entretecia nos postais…
Hoje – e ontem – como o serviço demandava a convocatória de crianças com vacinas em atraso – decidi parar a resistência (é uma tarefa chata e repetitiva) e procurar um ponto de originalidade que torna-se o peso em virtude, o custo em ganho.
Dei por mim a lembrar o quanto as assinaturas revelam a personalidade de quem escreve.
Olhei para a minha letra… quando era pequenote (não que tenha crescido muito – ainda estou na média) diziam as meninas (e se elas dizem – relativamente a letras – isso tem valor pois elas mantêm-na redondinha e ajeitada… regra geral) que a minha letra era muito gira.
Olhei para os gatafunhos que se estendiam nos registos de enfermagem em redor – stressados, tensos, indistintos, feitos à pressa, sem muita atenção, com palavras bem ocas, repetindo coisas já escritas, sem pinga de personalidade, sem alma… e reparei na minha dormência…
Juntando o útil ao agradável – sentei.
Puxei as resmas de postais, as listas de crianças a convocar e – desta vez sem sentir tanta dor só de pensar no tempo, paciência e outras coisas e tais que exigiria a situação… escrevi a primeira letra.
Foi um “E” maiúsculo.
Ao princípio custou.
Só faltava esticar a língua cá para fora, ladear a cabeça e sentir como no pulso faltava a destreza e leveza para traçar a letra com o seu habitual floreado, com as curvas elegantes e artísticas com as que adorava decorar cada tracinho daqueles que – unidos num papel – criavam uma mensagem, um algo que havia vindo de algures, que havia passado por mim, e que tornava nova forma na resma de papel em branco – com linhas ou quadradinhos – que se transformava em poema de re-criação.
Era assim como me sentia em criança – co-criador (esta palavra não a sabia na altura, mas como já li muitos livros - opa! - aproveito e dou uma de “erudito” pelo não dito) - perante o caderno de “deveres” pautado com linhas para enquadrar as minhas letras.
Enooormes de início – bem que levaram uma catrefada de trabalho para se “enquadrar” nos cânones (régua em latim, como as reguadas que – de quando em vez - lá caiam por assuntos disciplinares diversos).
Lentamente – um prazer enorme foi crescendo da actividade tão diáfana em aparência.
Senti que compreendia a mensagem oculta mostrada no filme “Hero”.
A cena corresponde a uma das três histórias contadas pelo protagonista.
Um ataque armado avassalador contra uma escola de letras - mestres chineses tipografam os seus caracteres em formas únicas, como uma arte ancestral, tudo em tons de vermelho contra negro, uma chuva de flechas alienadoras (do império unificador) caem matando aqui e além alunos de vermelho.
Na mesma sala – entre as flechas que furam o telhado de palha e telha - o mestre traça impassível seus caracteres. Um a um os alunos vão morrendo, enquanto o velho mantém a sua mesma atenção e devoção.
Um dos heróis do filme traça – com arte de pena que parece espada - um carácter em vermelho vivo – que será símbolo do filme… A mensagem que o imperador não compreendera: “tudo baixo um mesmo céu”, escrita em tons de sangue e devoção sem força ou imposição.
A minha mente toca as cenas enquanto comungo dos segredos mostrando o profundo em cada coisa que se faz com amor, tempo e desprendimento. Foi esta a magia das letras hoje.
Cada nova reviravolta do “A”, cada tracinho do “X”, cada traço de personalidade erguendo-se do “N” e do “R”, cada bolachuda calma do “B” e do “D”…
Cada uma que reencontrava o seu lugar antigo mostrava-me quem eu fora ao mesmo tempo que se entrevia o tal processo de “cimentação” de velocidades endiabradas, de desprendimentos bruscos, de aluimento da devoção com que traçava a minha personalidade nas linhas. Vi esse tal processo que eregeu cidades betonadas e avenidas rectilíneas nas minhas folhas brancas – sobrepondo-se ao suave declive das colinas ou ao doce fluir de rios mansos entre as palavras ondulantes…
Gostei de distinguir o tal “progresso” que se havia dado em mim. Gostei de me “revisitar” – de olhar para a criança e ver como ela julgava o adulto que aparentemente se fez baixo as linhas de fundo do caderno da vida.
Acho que ela não gostou da minha letra – e eu, sinceramente – prefiro a sua.
Talvez algum dia – pequeno Daniel – volte a traçar letras, palavras e frases com o mesmo carinho e dedicação, com o mesmo deleite e atenção, com o mesmo sentido despreocupado e generoso sobre o tempo e o espaço a preencher no caderno da vida.
Agora – tenho de escrever depressa – as agulhas dos relógios parecem mandar e os números contam mais que a vida nas letras do dia.
Mas – talvez – volte a escrever com essa mesma parcimónia que apenas uma criança sabe dar ao simples que é viver…
Bem haja pequeno Daniel – por me teres tocado na distância. Bem haja.
1 comentário:
Gostei imenso deste texto ficando o comentário reduzido a este "gostar", porque é um texto muito pessoal. Sei que um dia ´terás vontade de virar a folha do caderno para de novo voltares a escrever como o "pequeno Daniel".
Abraço
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