“Quise cortar la flor
mas tierna del rosal
pensando que de amor
no me podria pinchar
y mientras me pinchaba
me enseño una cosa
que una rosa es una rosa es una rosa...
Y cuando abri la mano
y la deje caer
rompieron a sangrar
las llagas en mi piel
y con sus petalos
me la curo mimosa
que una rosa es una rosa es una rosa...
Pero cuanto mas me cura
al ratito mas me escuece
porque amar es el empiece
de la palabra amargura
Una mentira y un credo
por cada espina del tallo
que injertandose en los dedos
una rosa es un rosário”
Mecano – “Una Rosa Es Una Rosa”- refrão – J. Cano – baseado numa frase de Gertrude Stein
Escrevo enquanto a minha orelha ainda lateja, enquanto a minha mandíbula ainda dói… foi ontem – mas dói.
Não doeu na altura, na altura nem tive tempo para racionalizar a coisa… por isso, agora quero guardar isto, para me lembrar…
Sai à noite, era Sábado.
Decidi sair do meu claustro auto-imposto e falar, ver e sentir gente em vez de estar nos meus mundos virtuais.
E fui…
Encontrei um par de colegas… e logo estabeleci pontes de conversa.
Nós os humanos produzimos endorfinas pela interacção social… o cérebro “excita-se” com os outros – sobretudo com a conversa e o riso que dela advém – e, o seu “orgasmo” são substâncias químicas que se ligam às células, nos mesmos receptores que os opiáceos… logo – somos viciados nos outros, naquilo que obtemos deles e que alquimicamente geramos em conjunto… esse é o sumo sagrado, que provém das profundezas e meandros, daquela que pensamos ser a mais complexa máquina cogitante do Universo…
Em frente.
O pub onde estava – em Valença, aquilo está tudo junto, não há muito para onde ir – estava praguejado de tabaco, pelo que vim respirar um pouco cá para fora - de forma a subsistir aos vários “rounds” contra o tabaco que ainda tinha pela frente, e obter a minha “dose” de endorfinas da semana…
Cá fora estava alguma confusão.
Todos (umas 20 pessoas) olhavam – algures entre o divertido e o desconfiado – para um pequeno grupo de gente, em barafunda aparente.
Um deles lá se contorcia, agarrado por dois colegas – prometendo partir e desfazer tudo, camisa ao penduro de tanto puxarem pelo moço.
Por mim passou um tipo miúdo (de altura, não em idade – depois vi que o conhecia dos tempos de infância, de aterrorizar as minhas aventuras solitárias pelas muralhas da Vila – sempre tive esta tendência de passear sozinho… he he; suponho que o caminho de Santiago já começou pelos meus 4-5 anos, quando deambulava maravilhado por aqueles aglomerados de pedras ecoantes de história).
Anyway – o sujeito passou – “arrebolando” comigo e mais metade da plateia.
A noite estava de gelo (eu tava de casaca no pub) mas o homem “miúdo” lá levava apenas uma T-shirt em cima.
Passou pelo grupo dos que agarravam o “descamisado”, saltou uma pequena cerca, foi até ao campo e agarrou uma pedra… depois olhou em volta – meio desorientado – e puxou rua acima – para lá da minha linha de visão – com mais três sujeitos.
Não sei o que me deu – sinceramente nunca fui de heroísmos – mas saltei e fui atrás.
Olhei pela rua acima e estava um grupo de 3 raparigas e dois rapazes lá ao fundo. Os sujeitos dirigiam-se a eles… eu atrás como uma criança perseguindo o flautista de Hamelin… tenho cada coisa…
Passou um carro da polícia – que ficou deveras entretido com o “desfraldado” (agora já estava assim), quem continuava a prometer hecatombes a tudo e a todos agarrado pelos dois amigos e com 20 pessoas a assistir.
Ninguém tentara ver o que faria o da pedra, ninguém se mexeu das bancadas…
Parece uma cena do “gladiator” – Russel Crowe gemendo: “are you entertained?”… só não havia espada para lançar ao público de forma a despejar os copos cheios e as bandejas do lugar de privilégio nas tribunas imaginárias…
Agora penso assim – na altura não pensava nada.
Ia (como a tal criança enfeitiçada), atrás da pedra e da camisa de manga curta na noite gelada.
Passei pelo carro da GNR enquanto subia – debrucei-me na janela “olhem que o problema vai ser ali em cima”… apontei… mas já começara a confusão…
Um dos GNR saiu do carro, sacou o cacete e correu comigo.
Um dos rapazes que ia com as miúdas estava com dois dos tipos que subiram.
O da T-shirt estava no campo – a dar murros, que eu sabia serem murros de pedra em mão.
O quarto dos perseguidores, olhava.
As miúdas berravam.
O polícia avançou para os três embrulhados no chão – eu saltei o muro e meti-me no campo.
Não pensava – fiquei grande parte da noite a meditar neste vazio.
Não havia banda sonora estridente, música a elevar-se gradualmente à medida que a acção atingia o seu auge… não pensava.
Sentia.
Sentia-me uma mãe (se é que poderei sentir-me assim alguma vez), sentia-me escudo, queria estender-me e amparar o que levava com a pedra e o que dava.
Medito sobre isto e sinto-me confuso.
Não queria agredir o agressor …
Não tinha pensamentos de maior – só queria proteger… os dois… estranho.
Proteger o agredido – que mal se defendia; não sei se nada fazia por estar alcoolizado; se – como vim a saber depois – era por ser estrangeiro ilegal e não querer problemas; se por estar com a cabeça aberta e a “sangrar pela pedra”.
Agarrei os dois… e era mãe de ambos…
Não queria que um agredisse a sua humanidade na pessoa de outro… isto pensei depois acerca do que sentira então… sinceramente – estava e estou ainda nublado pela situação.
Não veio ninguém.
Tentei não agarrar nenhum em particular para negar oportunidade ao outro de agredir o agarrado… distância – o da T-shirt e pedra reparou que havia polícia e afastou-se ligeiramente.
Agarrei o da cabeça a sangrar e levei-o para o seu grupo.
O polícia ainda esboçou um gesto para parar o da pedra – mas logo os amigos o rodearam, falando de forma vigorosa para o polícia, afastando o agente dali.
O tipo voltaria ao Pub depois – a resmungar qualquer coisa como “Todos me batem, eu não me meti com ninguém”… Tshirt (que tiraria a meio da rua) ensanguentada…
mas voltou… voltam sempre, com uma razão para ser vítimas… e são… mas de outra maneira bem mais violenta e destrutora… são vítimas da sua predação na humanidade colectiva… vítimas todos… sem opções… de opções abortadas… abortos… humanos abortados… opções humanas sem nascer… não sei.
Um tipo urinava desde a rampa de subida para o pub, directamente para a rua por onde a gente da noite passava …
O guarda desapareceu (o outro descamisado e desfraldado ainda prometia que “partia aquela merda toda”, agarrado pelos eternos dois amigos e com a atenção de umas quantas garinas novas e moços sorridentes).
Eu voltei para o Pub.
O estrangeiro (soube então que era Brasileiro) foi para o Centro de Saúde para ser consultado… eu no meio do ambiente de barulho abafado, da música misturada no tabaco e nas vozes de mil conversas estranhas de um pub no Sábado à noite…
Fiquei a meditar no que sentira e no estranho da situação…
Não pensara em nada – branco – só fui.
Queria parar aquilo e fui…
Ninguém mais veio, ninguém mais quês saber… e o Brasileiro ilegal a levar com uma pedra na cabeça enquanto a namorada berrava e o polícia separava os outros três, um desfraldado prometia quebrar o mundo, gente ria, alguém mijava pra rua cheia inundando tudo de despropósito… e eu naufragava naquilo tudo…
Sai dali com um amigo – fomos para o pub número #2 do calvário de Sábado noite.
O polícia multava condutores que passavam… o de T-shirt branca passou por eles já de casaca da mesma cor a tapar o sangue alheio… ou seria o próprio, sem ele e mais ninguém saber?...
Eu meditava – dá-me isto amiúde.
O mundo passa a câmara lenta e eu vejo os pormenores… adoro pormenores…
Via os polícias nas multas, o da T-shir ensanguentada mas coberta de branco debaixo da casaca, o Brasileiro a caminho das urgências nos braços da namorada que antes berrava… e eu passava pelo meio…
No outro pub dancei um pouco – passeei as minhas penas abertas no meio da freguesia dos pavões e sentei novamente.
Copo ao lado, meditava no ambiente – sete ou oito gajos “velhadas”, pais de família já entrados em idade - estavam a um canto apreciando as miúdas já entradas em álcool… Contorcendo-se em gestos de cabaret para todos os que as apreciavam – eles sabiam que eram as filhas com outros rostos, elas que eram os pais com outra idade… todos entrelaçando-se naquela espiral estranha… eu e tudo… de novo o barulho surdo dos flashes, da música no tabaco, da bebida na mão, do amigo encostado à coluna a pensar nas suas pinturas que ele desenha a carvão…
Chegou alguém e – literalmente – abalroou o assento onde estava.
Contra a barra e meio acordado deste sonho de noite de verão, afastei o peso de cima de mim.
Lembro que não o fiz de forma violenta – hoje estava tudo menos violento depois de fazer a pesquisa para o texto anterior; toda a barbárie dos documentários, das testemunhas, dos textos descritivos, das fotos… tudo me roubara a vontade de estar violento… de o querer estar alguma vez…
Agarrei aquele peso, amparei-o na sua queda sobre mim, e repus o estado de verticalidade que perdera…
“A mim não me empurras – tas a ouvir?!”…
Disse-me uma cara a dois centímetros da minha com uma voz meio arrastada mas vigorosa… eu nem me apercebera do sentido agressivo – estava tão a leste disso – estava naquele barulho surdo, naquela festa de “sem sentidos”, naquela dança de juventudes entrelaçadas para os pais que olhavam ávidos de juventude perdida, naquele carnaval da alma…
Comecei a explicar que estava em cima de mim e que…
“POUMP”… soou baço, distante… suponho que, por estar habituado a pancadas nestes treze anos de Kung-Fú, nem me chateou muito.
Foi na orelha e na mandíbula – bem no ângulo – onde dói e onde é mais perigoso – como sabemos no combate.
Os K.O dão-se assim… apanhando este ponto…
Eu seguia (e ainda sigo neste estranho estado) e perguntei ao tal porque me tinha batido.
Ainda estou incrédulo – não por que me batera – compreendo que estava frustrado, bêbado, com toda aquela agressividade que se destila no ambiente da noite … que se transforma em desejo, em raiva, em fome e sede… essa ancestralidade induzida pelas luzes, pelo ritmo constante… pelas bebidas inibidoras da inibição, pela frustração diária - por tudo e por nada - contida nos hábitos sociais… isso eu compreendo…
Fiquei (e fico) incrédulo com a minha reacção.
Genuinamente eu queria compreender o porquê, queria mergulhar na razão…procurei-a no seu olhar.
Bem fundo – olhos nos olhos – sem medo, sem mãos levantadas que me defendessem do próximo golpe… procurei um porquê…
Via-me ao espelho e queria saber porque me batia, porque me agredia, porque me procurava destruir assim, porquê odiava a minha sombra, porque desejava estilhaçar a sua projecção no espelho humano… era dois… via ambos… e estava distante… procurando entender…
Alguém o agarrou por detrás… ele cara incrédula também… talvez por não receber retaliação… perdendo-se entre a tentação de destruir o que não se defende e abismado pelo que não contrarresta…
Estupidificados ambos… arrastaram-no para fora… o amigo veio ter comigo e desculpou-se… eu perguntei - “Porquê?”…
Ele não entendeu… começou a dizer “Opa, bebeu – sabes como é”… “Eu conheço-te, tenho-te visto, desculpa lá, ele não está bem”…
Eu perguntara porquê se desculpava… nada havia a desculpar…
A vítima éramos ambos…
Desfilaram pela minha consciência imagens dos documentais de guerra, das testemunhas do holocausto, do filme que vira nessa tarde “La vida secreta de las Palabras” – da produtora de almodôvar – uma obra de arte (novamente) que me tocou até ao mais profundo…
Um a um, colegas passavam… queriam saber que se passara… sempre fora o pacífico… nunca havia agredido ou sido agredido na minha vida… assim tão repentina… violenta… gratuitamente…
Chorei… sem vergonha… chorei…
Por ele, por mim… por tudo…
Sabem à quanto não chorava?
A sério que me tenho esforçado por isso… mas só chorava nos filmes da “Lassie” quando era “kinininho”… chorei…
À frente das raparigas, à frente dos mais velhos que as desejavam, à frente dos meus amigos, à frente da empregada do bar… não continha as lágrimas… chorei…
Disseram-me que ele chorava lá fora… eu chorava com ele… estranha sintonia…
Chorei por tudo… chorei por nada…
Quanto mais escrevia sobre a guerra e a sua loucura mais me enchi de dor, de piedade pela minha própria humanidade perdida… chorava por Kosovo, pelos Bósnios, pelos Muçulmanos, pelos Sérvios, pelos Alemães, pelos Judeus, pelos Americanos, pelos Palestinos, pelos terroristas e pelos aterorizados -
sentia que uns já foram os outros antes e que os outros o seriam por sua vez depois… a não ser que todos chorássemos…Chorei porque me agarrava à minha humanidade com tudo o que podia… porque ter parado aquela mão (técnicamente aquilo era um circular à cara – a coisa mais fácil de parar com bloqueio - se não for antecedido de algum golpe recto rápido e curto que desmanche uma guarda) seria ter cooperado na vertigem da canibalização própria pela destruição alheia…
Chorei… “caguei” para a minha pose de pavão, para as minhas roupas bem alinhadas e o meu ar seguro tão arduamente construído ao longo dos anos… chorei…
Tanto combate para aquilo? Pergunta uma parte de mim pragmática...
Sim… finalmente me senti – pela primeira vez – cinto negro…
Escolhi – reparem bem – escolhi levar, escolhi não reagir… agi, não reagi… naquele segundo escolhi olhar nos olhos em vez de fazer um bloqueio com murro simultâneo, um agarre rápido ao pescoço, uma luxação ao braço de ataque e uma imobilização no chão com a cara a lamber os vidros… isso era automático – nem precisava de pensar muito porque treinara tantas vezes que estava escrito em cada músculo… mas levei, levei, levei, levei… e olhei nos olhos enquanto o fazia…
Que vi? Perguntarás tu que lês…
Que vi nesses milisegundos nos que tudo era câmara lenta, nos que o mundo “freezed” e as bailarinas se contorciam num eterno esgar de prazer, olhos de luxúria as contemplando na sua inocência provocadora, na sua intenção velada manifesta, espirais do fumo se entrelaçando com a mão que avançava pelo rebordo da minha visão…
vi cegueira…
Vi que não me viam, porque quem eu via estava ali… era eu naqueles olhos vidrados… eu estava lá dentro… não ali – sentado – prestes a ser badalado com um sonoro “bang” de igreja adventista do juízo final… eu estava lá dentro… dele… vi-me a mim…
Se Siddharta viu o rio e as faces e o um.. eu vi a ele, a mim e tudo num só…
Vi antes, vi durante, vi depois… e - estranho – fiquei unido a aquele rapaz.
O meu pranto e o dele tornaram-se um.
Lavamos com as mesmas lágrimas salgadas do mar interior – desse mar “imanso”, profundo, sem fim – lavamos a dor da loucura desse momento, lavamos a dor das loucuras de outros momentos, lavamos a dor de outros eus por ai fora – antes, durante, depois… sempreUm mar que desfaz a pedra das aparências, a pedra dos ódios pela nossa própria humanidade encarcerada em animal…
Agrediu o ódio pela sua prisão, pela limitação de sofrer as cadeias de estar assim – pequeno, impotente, frustrado…
Agrediu o desejo não concretizado, a incompreensão da rotina sem sentido, da injustiça diária, da falta de perspectivas para amanhã que não fossem as de ontem…
Chorou tudo – desde a criança que nasce e vai morrer, até ao “amo-te” que desejava mas nunca disse… chorou.. chorei…
Ainda dói… por isso escrevo – se não, esquecia… ou não?
O ter procurado entre tanto ódio, tantas aberrações, tanta crueldade… despertou isto… este algo que me agarrou as mãos atrás das costas, rasgou as minhas vestes e me atirou com peito aberto para os espinhos…
Uma rosa – que languidesce… uma rosa… de pétalas delicadas, de embriagante aroma… de espinhos profundos e feridas amargas… de dor e embelezamento… uma rosa…
A palavra Amar começa Amargura… mas tem o tal, o Mar… esse que vertemos os dois eus alheios, esse que derramamos para lavar tudo, para nos redimir… choremos… irmão… choremos…